Entrelinhas

Choque de realidade

Camilla Muniz

capa do livro

Estética, mídia e cultura. Este é o tripé que sustenta O choque do real, novo livro de Beatriz Jaguaribe, professora da Escola de Comunicação (ECO-UFRJ) e pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação (NEPCOM-ECO-UFRJ). Em seis ensaios, a professora analisa como a estética do realismo presente na arte e na mídia brasileiras contribui para a construção da percepção da realidade contemporânea. Confira a entrevista com Beatriz Jaguaribe, na qual a autora explica alguns conceitos presentes no livro.

Olhar Virtual: Que significa exatamente o "choque do real" abordado no livro?

Beatriz Jaguaribe: Defino “choque do real” como uma estratégia estética de intensificação da representação, ou seja, a utilização dos códigos do realismo naturalizados pela nossa percepção do cotidiano. A narrativa de nossa vida cotidiana acontece de uma forma realista, já que ninguém narra suas experiências utilizando um código mágico. Os textos e filmes que usam essa estética do realismo intensificam a busca da realidade através de acontecimentos, narrativas e ocorrências chocantes, embora também cotidianas, costumeiras e, de certa forma, banais. Tais manifestações culturais têm como objetivo produzir um efeito catártico e nos mostrar como permanecemos indiferentes ao aceitarmos eventos costumeiros e banais — que fazem parte de uma realidade banal — mas absolutamente chocantes ao mesmo tempo, como seqüestros, estupros, assaltos e torturas. O efeito do “choque do real” é incitar essa catarse e constituir algo que a escritora Susan Sontag chama de epifania negativa, visando despertar uma reação no leitor ou no espectador. 

Olhar Virtual: Qual o papel da mídia na construção da realidade social?

Beatriz Jaguaribe: Na contemporaneidade, a mídia se tornou o veículo mais importante na construção da sociedade e na fabricação da realidade. Nos anos 1950, quando o filósofo Theodor Adorno popularizou a idéia de indústria cultural, tinha-se uma visão monolítica da mídia, que reproduzia conteúdos para espectadores totalmente passivos, domesticados e exercia um papel quase que totalizante. Hoje, esse conceito tão monolítico da indústria cultural se pluralizou. A realidade é uma construção social em disputa e a mídia tem um papel fundamental nesse jogo, mas, simultaneamente, ela também é disputada por instituições e ideologias políticas. O que torna o papel da mídia tão fundamental é que só através dela há a divulgação dessas pluralidades. Entretanto, a mídia não é necessariamente homogênea nem monolítica.

Olhar Virtual: Como a senhora encara o fascínio da sociedade por produtos culturais e midiáticos que retratam a realidade, como os reality shows e os filmes Tropa de elite e Cidade de Deus?

Beatriz Jaguaribe: São dois fenômenos correlacionados, mas um tanto diferentes. Na minha opinião, Tropa de elite e Cidade de Deus se referem exatamente ao que eu chamo de “choque do real”. A verossimilhança com a realidade é tanta que esses filmes são capazes de torná-la mais real do que aquela que as pessoas absorvem costumeiramente.  Filmes com um fator de intensificação da realidade e de denúncia social fazem as pessoas absorverem a narrativa como um relato contundente e se darem conta de que vivem numa sociedade na qual há tráfico de drogas, crianças armadas e carnificinas. Tropa de elite e Cidade de Deus têm essa pedagogia da realidade através do efeito de choque. Já os reality shows não usam a estratégia de choque do real nem a pedagogia da realidade. Neles, existe o voyeurismo dos espectadores, que querem ver espelhados na tela as suas próprias individualidades banais e cotidianas. O reality show é uma espécie de circo eletrônico que exibe pessoas anônimas, sem grandes talentos nem capacidades, sendo capaz de saciar a ansiedade por celebridades imediatas que permeia a cultura midiática.

Olhar Virtual: O choque do real é dirigido a um público genérico ou exige do leitor algum conhecimento específico na área de comunicação?

Beatriz Jaguaribe: O livro é dirigido a todas as pessoas e é escrito numa linguagem a mais despida de jargões possível. O primeiro capítulo, bastante pedagógico e didático, explica o surgimento das estéticas do realismo no século XIX e suas relações com as experiências da modernidade e com o aparecimento de novas tecnologias de representação visual, como a fotografia, o cinema e, posteriormente, a televisão. O segundo ensaio fala sobre a fotografia pública no Brasil, que em diferentes períodos históricos mostra quem são os principais protagonistas — visíveis e invisíveis — da nação. No século XIX, por exemplo, as fotografias de escravos os apresentavam na condição de escravos ou como ajudantes e mucamas. Já no princípio do século XX, há a proliferação de fotografias dos favelados mostrando a autoria dos favelados sobre si mesmos. Através dessas imagens, é possível perceber como os conceitos de cidadania e de visibilidade se modificaram ao longo da história. Além disso, o livro contém um ensaio que trata propriamente do choque do real e outro sobre realismo sujo e experiências autobiográficas, que trabalha a necessidade da autoria e o porquê do consumo de autobiografias. O último ensaio, do qual particularmente gosto muito, aborda o fetiche e o desejo existente sobre bonecas hiper-reais e analisa suas representações em sites na Internet, sex shops, robôs, andróides e até na literatura. O foco está na boneca sexual, que fabrica uma imagem real e, consequentemente, cria o desejo.