Ponto de Vista

Autismo: inserção social é possível?

Cinthia Pascueto – AGN/Praia Vermelha

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O autismo é considerado por especialistas uma doença neurológica que dificulta a interação do indivíduo, o que pode impedir inclusive a continuidade dos estudos. Contrariando esse conceito, Daniel Ribeiro Jansen Ferreira, jovem autista e avesso a qualquer contato físico, defendeu no mês de fevereiro sua dissertação de Mestrado no Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sendo aprovado com louvor pela banca examinadora.

A história de Daniel Ferreira desperta discussões sobre a forma como a sociedade lida com a questão do autismo. Envolvimento em atividades cotidianas de planejamento e convivência é um grande desafio para o autista, o que justifica o baixo número dessas pessoas que conclui a faculdade. Como, portanto, foi possível ao estudante completar o mestrado?

A partir destes questionamentos, o Olhar Virtual conversou com Ana Cristina Barros da Cunha, professora do departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da UFRJ, que contou sobre tratamentos, processos de inserção social e novos olhares a respeito do autismo.

Olhar Virtual: Como a senhora definiria o autismo?

O autismo é considerado um transtorno global do desenvolvimento infantil que ocorre antes dos 3 anos de idade da criança, tem prevalência em meninos e que se caracteriza por diferentes sintomas que se apresentam como déficits ou incapacidades na área da linguagem, cognição e sócio-afetividade.

Para um diagnóstico formal do autismo são utilizados sistemas internacionais de classificação como o DSM-IV, que apresenta um conjunto de critérios diagnósticos que podem ser considerados sintomas ou indicadores do transtorno em três áreas principais: interação social, comunicação verbal e não-verbal (inclusive jogos simbólicos) e interesses repetitivos e restritos.

É importante destacar a relevância do diagnóstico clínico diferencial para que o autismo não seja confundido com outras síndromes ou transtornos globais do desenvolvimento, como o transtorno desintegrativo da infância, por exemplo, que pode ocorrer após os 3 anos.

Olhar Virtual: É possível ao autista levar uma vida considerada “normal”?

Discutindo a palavra "normal", percebe-se que a definição da mesma está atrelada ao conceito de doença, enquanto o autismo deve ser compreendido no âmbito da deficiência, que significa uma déficit no desenvolvimento que gera uma diferença estrutural e funcional. Assim, o autismo não deve ser considerado como uma doença passível de cura pela utilização de um remédio, por exemplo. No entanto, não se pode desconsiderar que a intervenção junto a estes indivíduos deve ser o mais precoce possível, para que se garanta o surgimento e desenvolvimento de seus potenciais.

Olhar Virtual: Quais as maiores dificuldades nesse processo?

Independentemente do grau de comprometimento nas diferentes áreas de desenvolvimento do indívíduo, as dificuldades estão no processo de adaptação ao meio, pela falta de habilidades fundamentais para todo e qualquer individuo: sociais, afetivas, comunicativas e cognitivas eficientes. Não se pode esquecer que, em alguns casos, esses prejuízos são muito graves levando até a uma dependência permanente do outro. Logo, esses aspectos, dentre outros, devem ser considerados para que se possa propiciar ao autista condições de viver em sociedade, relacionadas diretamente com mecanismos de adaptação do meio e não da adequação da pessoa autista ao meio, porque assim não estaríamos aceitando sua condição de diferente, deficiente.

Olhar Virtual: O meio de convivência pode interferir na maneira como a pessoa com autismo se desenvolve, se comporta na sociedade?

Com certeza o ambiente pode proporcionar condições de inclusão, ou seja, situações de experiência mediada que proporcionem à pessoa com autismo a vivência de situações que promovam seu potencial de aprendizagem. Assim, o que deve ser discutido então seria a possibilidade de desconstruir padrões psicossociais que exigem uma adaptação que, por não poder ser cumprida por alguns, acaba por excluir não somente as pessoas com autismo, mas qualquer pessoa que possui um estigma, uma diferença, como por exemplo, a deficiência. A aceitação ativa da diversidade humana é um processo que passa por uma desconstrução de preconceitos que legitimam a idéia de que uma pessoa diferente deve ser excluída pelo simples fato de que sua diferença é vista como um sinal negativo, de que ela tem menor valor perante os demais.

Deve ser destacado, também, que o autismo, além de ser um transtorno que atinge crianças de todas as classes sociais ou etnias, possui diferentes perfis de apresentação que variam do mais grave ao mais leve, associado ou não a outras condições e síndromes, até genéticas. Assim, nos casos mais leves, desde que sejam propiciadas condições adequadas no ambiente de convivência (família, escola, etc.), é possível para a pessoa com autismo ser incluída socialmente.

Olhar Virtual: No caso de Daniel, vimos que é possível ao autista concluir o Ensino Superior, lidar com a vida em sociedade. Por que então casos como o dele são raros?

Porque a sociedade compreende a diferença ou a deficiência como uma doença e esse olhar coloca a pessoa com deficiência numa posição de desigualdade em que não tem condições de expressar seus potenciais de acordo com sua condição diferente do padrão "normal".

Olhar Virtual: Que condições são necessárias para que a pessoa com autismo sinta-se como parte de um todo social, contornando as dificuldades de relacionamento?

Em primeiro lugar, desconstruir o conceito de deficiência, no caso do autismo, como uma doença e elaborar esse conceito com base na idéia de diferença da diversidade humana, para que, assim, as pessoas que tenham uma diferença no seu funcionamento possam ser ativamente aceitas como mais uma diversidade que compõe a humanidade e não como variações, aos quais são imputados a pecha de desviantes, estigmatizados em um ciclo eterno de rotulagem social.