Entrelinhas

Ciberpólis – redes no governo da cidade

Priscila Sequeira

capa do livro

Lançado no dia 19 de março, o livro Ciberpólis – redes no governo da cidade é o resultado da pesquisa Redes tecno-sociais e gestão democrática da cidade financiada pela Lacnic, um registro de endereçamento da Internet para a América Latina e Caribe. Trata-se, basicamente, de um órgão responsável pela gestão da Internet em tais lugares que possui o programa Frida, apoiador do desenvolvimento de projetos acadêmicos.
A obra se propõe a refletir sobre o papel que a tecnologia exerce no processo de transformação da política. Sua inovação está no fato de revelar como a utilização de novas tecnologias da informação permite uma interatividade muito maior entre o Estado e a sociedade, capacitando-a a se articular e formular novas representações políticas e sociais.

O Olhar Virtual entrevistou a organizadora do livro, a arquiteta e professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/ UFRJ), Tamara Cohen Egler, a fim de saber mais sobre sua pesquisa e sobre a forma de organização da sociedade contemporânea diante de fenômenos como a Internet.

Olhar Virtual: Sobre o que fala o livro?

O livro é o produto de uma pesquisa. Já faz alguns anos que trabalhamos com esse tema. Viemos trabalhando com a questão da inovação tecnológica, da comunicação, da cidade.

Nós fizemos uma pesquisa na Internet para identificar de que forma ela está transformando as relações sociais no sentido de potencializar a ação política das organizações. Quando começamos a pesquisa, eu não tinha a dimensão do que encontraria e a resposta da realidade é muito maior do que eu tinha imaginado. Pensei em uma coisa que estava começando; na realidade, já estava a pleno vapor. Então, o objetivo do trabalho é revelar como a tecnologia, de fato, capacita uma sociedade para se articular de outra forma e formular novas institucionalidades, que constituem uma nova esfera política.

O Estado é uma representação da sociedade. A sociedade determina, delega o poder para a gestão bem socialmente demarcada. O que queremos mostrar é que o Estado é uma representação política e que a tecnologia pode desenvolver outras formas de representações políticas, outras formas de coesão social.

Quais são as diferentes possibilidades de coesão social? Há as redes. O conceito de redes é um conceito que parte da compreensão de que as pessoas podem associar-se de outra forma, no sentido de defender os interesses compartilhados. Então, há uma nova possibilidade de coesão social dada a possibilidade de constituição em torno de um objeto comum de ação.

Que quer dizer esse objeto comum de ação? Dá para perceber que a sociedade está organizada em torno de temas, de categorias de intervenção, que são as diferentes categorias de políticas públicas. Vemos, então, que existem as redes de meio ambiente, redes de saneamento básico, redes de planejamento urbano, redes de cultura, de defesa da constituição social, de direitos humanos e de desenvolvimento econômico. Nós identificamos estas, que atuam na Internet de uma forma muito mais intensa do que aquela que nós havíamos, anteriormente, imaginado, mas também existem outras possibilidades que se organizam. Nós começamos a trabalhar na pesquisa quando o sistema ainda estava nascendo e começamos a estudar o tema de forma mais teórica, começamos algumas pesquisas empíricas. Essa pesquisa se aprofundou e realmente levantamos as organizações das políticas públicas, identificamos as conexões que se estabelecem entre as mesmas.

Olhar Virtual: O livro foi organizado a partir de uma pesquisa. Como foi organizado o grupo de pesquisa? É você quem lidera?

Há o projeto de interlocução. Então, quando eu vi o edital do Lacnic, formulei o projeto e chamei pessoas para trabalhar. São pessoas com quem eu já desenvolvia um diálogo anterior.

Olhar Virtual: Qual é a importância desse tema para a sociedade?

Estamos num processo de esgotamento da forma de representação política, uma crise institucional profunda, especialmente nesse momento em que temos uma gestão urbana que ignora as condições de saúde da população. Vamos ver o que está acontecendo agora. A Cidade da Música não pára, tem um investimento que é extraordinário. Enquanto a Cidade da Música recebe vultosos recursos da prefeitura, as pessoas estão morrendo nos hospitais.
A lógica dos governos é investir na transformação da cidade do Rio de Janeiro em uma cidade formal, para receber muitos turistas. Sabemos muito bem que esse tipo de parceria entre o governo local e os interesses do capital internacional é altamente perversa e não faz parte da necessidade da vida cotidiana das pessoas, de ir para a escola, de receber um bom tratamento de saúde, de ter um bom sistema de transporte. Durante os quatro últimos anos, não foi possível observar nenhuma ação na cidade. Nós precisamos investir nas condições de vida da população e não nas condições de produção de uma cidade glamourosa.

Olhar Virtual: Por que do título “Ciberpólis”?

Polis é um conceito de Aristóteles, é o lugar do espaço público, do cidadão. Isso é muito diferente da cidade, que tem a ação da privacidade, como Rio de Janeiro, São Paulo, Paris, Londres. Polis se refere ao espaço público, onde se tomam as decisões em nome do bem comum. É a capacidade que os homens têm de reunir-se em uma esfera pública, tomar decisões coletivas e agir em direção a essa decisão que é coletiva. Essa ação coletiva é originada num consenso.
Então, “Ciberpólis” está associado ao conceito de polis, a como um maior número de pessoas se aglutina em torno de uma decisão e o fato de quanto maior for o número de pessoas, maior é o poder, já que é a esfera pública que constitui o poder. “Ciberpólis” é um conceito criado por mim, porque eu percebi que a polis tem outra configuração na realidade digital.

Olhar Virtual: Pode explicar o conceito de redes sociotécnicas e alguns exemplos?

Redes sociais têm a capacidade de criar um coletivo que trabalha em torno de um bem comum. Redes sociotécnicas são aquelas redes sociais mediadas por tecnologia.

Existem diferentes formas de comunicação: o telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão. Na internet, no entanto, todos falam com todos. A natureza do ciberespaço é completamente diferente. O ciberespaço é feito de imaterialidade, fluidez, inteligibilidade, tem outra condição física. Essa condição física tem dimensão aterritorial e atemporal. Muda a relação espaço-tempo. Um exemplo disso é o Fórum Social Mundial.

Olhar Virtual: De que maneira as políticas urbanas foram transformadas pelo uso dessas novas tecnologias de informação?

Quisemos entender de que forma a Internet é usada pelo governo e pela sociedade e tivemos a intenção de cruzar essas informações e ver como se constituem redes onde participam o Estado e a sociedade. O que pudemos observar é que, de fato, essa interlocução ainda não está propriamente estabelecida porque, na realidade, mais de 90% dos membros das redes são organizações não-governamentais. Então, o Estado e a sociedade ainda têm uma interlocução muito restrita. Não chegamos a verificar quais são os efeitos súbitos. Se isso, de fato, transforma a condição de existência das pessoas. Então, essa é uma pergunta que ficou da pesquisa. É uma pergunta que nós estamos desenvolvendo numa atual pesquisa sobre o corredor digital e de que forma ele transforma o digital. Estamos examinando de que forma as tecnologias estão sendo utilizadas na transformação do território. 

Olhar Virtual: Como essas novas tecnologias auxiliam no processo de democratização da administração pública?

Conseguimos examinar isso só em São Paulo e no Rio de Janeiro. O que encontramos nessa pesquisa? Encontramos que cada administração pública as utiliza de uma forma diferente. A administração pública, tanto de São Paulo quanto do Rio, usa mimeticamente as tecnologias, reproduz a mesma estrutura de gestão. E as relações entre as secretarias permanecem distantes da mesma forma. Há uma estrutura hierárquica que se mantém. Temos o prefeito na cabeça, os secretários e, embaixo, os funcionários que participam daquela secretaria. Os programas continuam sendo os mesmos de antigamente, pouco interativos com a sociedade.

Na administração pública do Rio de Janeiro há uma Ouvidoria, um lugar onde para onde vai o cidadão que passou por todas as instâncias e não conseguiu resolver o seu problema. Agora a Ouvidoria foi colocada na internet, mas ela continua com a mesma estrutura de gestão. O ouvidor continua sendo aquela pessoa que é inatingível. Foi muito difícil os ouvidores se convencerem de que deveriam disponibilizar esse contato através da internet. No Rio de Janeiro, o Estado mantém o seu papel tributário e de controle, em que é pouco maleável. As organizações sociais não são reconhecidas como interlocutoras na Ouvidoria.

Na prefeitura de São Paulo é diferente. A secretaria que cuida do “sítio” digital de São Paulo se originou numa organização não-governamental, responsável pelo SAMPA, que era um site que organizava a política digital. Quando a Marta Suplicy assumiu a prefeitura instituiu essa organização.

Então, há uma diferença muito grande entre a administração das prefeituras de Rio e São Paulo, mas em ambas são mantidas as mesmas formas hierárquicas de poder e divisão do trabalho, com pouca interlocução social. Porém, justiça seja feita, na cidade de São Paulo há centenas de telecentros que fazem a cobertura digital e, de fato, constituem uma política bem sucedida. Na cidade do Rio de Janeiro, não existe sistema de inclusão dos telecentros, mas já existem alguns programas com esse cunho de instalação de política pública.