Olho no Olho

Máquinas de camisinhas em escolas públicas: prevenção polêmica

 

Júlia Faria

imagem olho no olhoNo último dia 25 de junho, José Gomes Temporão, atual Ministro da Saúde, anunciou a implantação de máquinas de distribuição gratuita de camisinhas em escolas públicas. Em uma tentativa de reduzir os índices de infecção por doenças sexualmente transmissíveis (DST), até outubro deste ano é prevista a distribuição de 400 máquinas pelas instituições de ensino já participantes do Programa Saúde e Prevenção nas Escolas.

Segundo o Ministério da Saúde, os índices de contaminação por AIDS entre os jovens são alarmantes. Entre os adolescentes de 13 a 19 anos, há 16 meninas com a doença para cada grupo de 10 meninos infectados. Mais de 30% das jovens afirmam não terem usado o preservativo por confiar em seus parceiros, enquanto que, entre os rapazes, apenas 7% tiveram o mesmo comportamento. Além disso, pesquisas do Ministério revelam que, entre os alunos com idades entre 13 e 24 anos, 47% possui vida sexual ativa e 9,7% não possui dinheiro para comprar camisinha.

O projeto, no entanto, vem causando polêmica. Não raro, é apontada a possibilidade de que os dispositivos atuem como estímulo à iniciação sexual precoce. Para comentar a polêmica e as implicações do projeto, bem como a importância da conscientização para prevenção contra as DST, o Olhar Virtual conversou com José Leonídio Pereira, professor da Faculdade de Medicina e coordenador do programa Papo Cabeça, e com Janete Luzia Leite, professora da Escola de Serviço Social.

 

José Leonídio Pereira
Professor da Faculdade de Medicina da UFRJ e coordenador do Programa Papo Cabeça

Sinceramente, não acredito que a implantação de máquinas para distribuição gratuita de camisinhas nas escolas atuaria de forma a reduzir a proliferação das doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez precoce. A questão ligada ao aumento da sexualidade entre a população adolescente não está apenas no aspecto da liberalização da prática sexual, mas também no do estímulo a que estão constantemente submetidos os jovens, seja em seu próprio grupo ou por meio da mídia.

Além disso, de acordo com o último Censo Escolar (2006) haviam 21.166.731 alunos matriculados, da 5ª série do ensino fundamental a 3ª série do ensino médio na faixa etária de 10 a 19 anos. Destes, 42% cursam o ensino médio, sendo 87,97% em escolas públicas. O restante, cerca de 12%, corresponde ao ensino privado. Portanto, o fato de a abrangência do projeto restringir-se somente aos alunos do ensino médio vai de encontro às últimas pesquisas que indicam que o início da atividade sexual está entre os 14 /15 anos. Desta forma, como a população alvo é o das escolas do 2º grau, 58% da população vulnerável à gravidez e a DST/AIDS ficaria excluída do projeto.

Não podemos esquecer ainda que é durante a adolescência que o cérebro do jovem começa a adquirir os conhecimentos que lhe darão o discernimento em relação a diversas situações. É este o período de formação do racional correspondente à área da córtex frontal e também das gratificações do centro de recompensa. E o prazer sexual é um dos fatores que aumentam esta recompensa, principalmente quando a prática está associada ao consumo do álcool.

Atualmente, a ingestão de bebida alcoólica inicia-se em média aos 11/12 anos e irá atuar diretamente na córtex frontal do adolescente, a qual ainda está em elaboração, fazendo, assim, com que a prática sexual não seja acompanhada de prevenção. Se observarmos as escolas de ensino médio noturno, a maioria dos alunos está fora das salas de aula, nos bares dos arredores, consumindo bebidas alcoólicas. Nos bailes e baladas freqüentados pelos alunos, é comum que a entrada para mulheres, bem como o consumo de bebidas alcoólicas, sejam liberados duas horas antes do ingresso dos homens. Como fisiologicamente a mulher é mais vulnerável ao álcool que o homem, o “bonde das mulheres”, como são conhecidas nos bailes funk, está “preparado” para o ato sexual, com seu racional previamente desconectado pelo álcool.

A meu ver, as máquinas de distribuição de camisinha são instrumentos frios, de consumo previsível e que funcionariam mais para os jovens já conscientizados sobre a importância do uso do preservativo. Provavelmente, os adolescentes mais tímidos se sentirão inibidos na sua utilização, temendo a reação de seus colegas. Ademais, faz-se necessária a aprendizagem da utilização correta da camisinha, dos riscos inerentes à alergia ao látex para ambos e a alternativa, neste caso, para a camisinha feminina de silicone. Fazer palestras em escolas não habilita os alunos na temática sexualidade. É preciso construir o conhecimento através de práticas participativas, onde a sensibilização seja um dos elementos-chave desta construção. Onde houver a máquina, que esta seja complementar a todo um trabalho já desenvolvido e que se construa também o saber através de metodologia sensibilizadora. E, onde não houver, que as ações se desenvolvam da mesma forma, preparando os jovens para a vida e não somente para a prática do ato sexual.

Acredito também que a máquina de camisinhas nas escolas não é o suficiente para estimular a prática sexual entre os jovens. A ausência do diálogo em casa e na escola sobre o assunto também faz com que o adolescente caia em um vácuo onde seus mestres no assunto são seus pares, a internet, as músicas, os filmes, em uma total ausência de valores. È preciso discutir a sexualidade como temática dentro da família, junto aos docentes nas escolas, porque como afirma Suzana Herculano Houzel em seus livros sobre o cérebro adolescente (O Cérebro em Transformação; Sexo, Drogas, Rock’n’roll & Chocolate, e O Cérebro nosso de Cada Dia) é preciso que emprestemos nosso cérebro a eles para que possam tomar algumas decisões. Mas como realizar esse empréstimo se os jovens não confiam em nós? Portanto, é preciso conversar, estar próximo — ainda que isto signifique o sacrifício de alguns objetivos imediatos. Nossa recompensa será maior ao vermos que nossos filhos e/ou alunos confiam em nós e que podemos ser um espelho do bem para eles sem que, no entanto, sejamos limitadores de suas ações.

Janete Luzia Leite
Doutora em Serviço Social e professora da Escola de Serviço Social da UFRJ.

Penso que o projeto de produzir e distribuir máquinas de camisinhas a ser implementado pelo Ministério da Saúde é um grande avanço, embora com quase 20 anos de atraso. Entendo que, como projeto-piloto, o foco inicial recaia sobre as 400 escolas integradas ao Programa Saúde e Prevenção (SPE). Entretanto, essa medida deveria se estender rapidamente a todas as escolas públicas do país.

Além disso, é importante perceber que a medida, se executada isoladamente, ou seja, caso não esteja conjugada a um amplo programa de educação e prevenção para os jovens, pouco impacto terá. Estabelecer programas para a prevenção de DST/Aids e gravidez precoce é complexo, principalmente entre os jovens, pois implica ações complementares agregadas, além do conhecimento de um sem-número de variáveis que compõem esta questão. Portanto, não é possível se limitar simplesmente à distribuição gratuita, seja de preservativos (masculinos e femininos), seja de anticoncepcionais (e aqui o espectro vai da pílula ao DIU).

A utilização de preservativos, em nossa sociedade, ainda é marcada por uma miríade de tabus e preconceitos. Sabe-se, por exemplo, que o preservativo feminino é muito mais caro que o masculino. Mas será que apenas isso justifica a sua não-distribuição? Se os meios para prevenir uma DST se restringem primordialmente à decisão do homem de utilizá-los ou não, a mulher já entra na “negociação” em ampla desvantagem.

Para mim, a educação para a prevenção é melhor que a conscientização. A vinculação entre a distribuição de preservativos e métodos educativos, além de possível, é imprescindível. Não adianta possuir a informação sobre como prevenir DST e gravidez e, no entanto, não ter acesso aos meios para pô-la em prática, e vice-versa. Além do mais, medidas desta ordem implicam, outrossim, no jovem conhecer o seu corpo, não apenas sob a ótica do funcionamento dos órgãos sexuais, como nas aulas de Educação Sexual, mas também – ou principalmente – de tocá-lo, olhá-lo, saber onde sente prazer.

É necessário enfatizar, porém, que o que chamo de educação para a prevenção não se limita a um repasse mecânico de informações acerca de como se adquire uma DST ou como se evita uma gravidez. Os responsáveis pelo ensinamento a estes jovens devem estar capacitados, não somente do ponto de vista informativo, mas, principalmente, quanto ao saber dialogar com os adolescentes de forma absolutamente clara, com a linguagem própria da juventude e desprovidos do caráter moralista / moralizador geralmente presente quando o assunto é sexo ou sexualidade.

Esta educação para a prevenção deveria contemplar, também, a utilização de drogas, notadamente as injetáveis. É lamentável que o Brasil ainda não possua, como um programa de governo, máquinas de distribuição e coleta de seringas. Em nosso país, a contaminação pelo HIV possui forte imbricação com o uso de drogas, notadamente entre os jovens. Tem-se, então, um circuito absolutamente perverso na rota de transmissão: uso de drogas injetáveis, contaminação sexual, gravidez, transmissão vertical.

Outro cuidado que se deve tomar é para que os jovens entendam que o preservativo não é uma moeda de troca, a exemplo do que ocorre em muitos casos com o vale-alimentação ou com o vale-transporte, que são trocados na rua por dinheiro – e com deságio.

Ademais, acredito que as críticas quanto a um possível estímulo à iniciação sexual que as máquinas nas escolas poderiam causar deveriam ser revistas e tal questão, tratada com um pouco mais de realismo. É notório que, no Brasil, o jovem não precisa deste tipo de “estímulo”, pois ele já é cotidianamente estimulado à prática sexual precoce – e a realiza. Em nosso país, a atividade sexual se inicia, em média, aos 14/15 anos de idade.

E ainda vivemos em uma época na qual o corpo é somente mais uma mercadoria. O “culto ao corpo” já extrapolou há muito a mera manutenção de uma vida saudável. As roupas, as músicas, os produtos de beleza e tecnologias médicas para reparo ou correção de imperfeições transformaram-se em uma fantástica máquina comercial e ideológica de sex appeal. As academias de ginástica estão cheias de pessoas que buscam um corpo “esculpido”, e não uma melhor qualidade de vida. Idem para os consultórios de dermatologistas, cirurgiões plásticos e clínicas de estética. Quantas pessoas tiveram severas seqüelas (em alguns casos, culminando com o óbito) para poderem ficar com uma “barriga tanquinho”?

Toda esta corrida desenfreada leva, na maioria das vezes, a se fazer muito pelo corpo, mas a contrapartida é uma ignorância grosseira sobre ele. Dessa forma, a máquina de preservativos não representa, sob nenhum ponto de vista, um estímulo a mais. Além disso, a maioria dos hospitais universitários e postos de saúde dispõe de distribuição gratuita de preservativos para a população. A máquina de preservativos evitaria apenas o deslocamento do jovem até uma unidade de saúde.

Estou completamente convencida – e já expressei isto à exaustão – de que são os jovens os maiores responsáveis por conter a pandemia de DST/Aids. A formação de gerações que se reconheçam como responsáveis pelo cuidado com o seu corpo – o que leva ao cuidado com o corpo do outro – é a maior estratégia que temos no momento.