Ponto de Vista

100 anos sem Machado de Assis

Miriam Paço - AgN/CT

imagem ponto de vistaCélebre escritor do século XIX, Joaquim Maria Machado de Assis se consolidou como romancista, poeta, dramaturgo e cronista, tendo sido também fundador da Academia Brasileira de Letras, da qual se tornou presidente em 1897. Nascido no Rio de Janeiro em 1839, Machado de Assis é autor de obras como A mão e a luva (1874), Quincas Borba (1891), Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1900), livros que inspiraram diversos escritores ao longo da história.

Machado de Assis começou seu exercício literário aos 15 anos, quando escreveu o poema Ela, publicado em revista da época. Foi autodidata, enfrentou preconceitos e críticas; ele também crítico de seus contemporâneos .

O bruxo do Cosme Velho, como era conhecido pelo seu costume de queimar papéis em uma caldeirinha, escreveu e, de uma certa maneira, integrou dois períodos da história da literatura: o Romantismo (com as obras Helena, A mão e a Luva, Iaiá Garcia e outros) e o Realismo (Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Memorial de Aires, entre outros) com histórias que se diferenciaram pelo seu caráter peculiar e irreverente diante dos demais autores dos mesmos períodos.

Neste ano de 2008, em que se completam 100 anos desde o seu falecimento, não faltam eventos que o homenageiem pela sua importância dentro da literatura brasileira.

Dau Bastos, professor de literatura brasileira da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, lançará até o final de setembro o livro Machado de Assis – Num recanto, um mundo inteiro, biografia que reúne recentes descobertas de pesquisadores a respeito da vida do escritor e apresenta desde aspectos da vida pessoal de Machado Assis, acontecimentos corriqueiros, a eventos de grande relevância e referentes à construção de sua obra.

O Olhar Virtual desta semana entrevistou o professor para conhecer mais sobre as principais críticas feitas ao autor e porque ele acabou por se tornar um dos escritores mais importantes da literatura brasileira.

Olhar Virtual: Machado de Assis participou de dois períodos literários. Em qual deles se destacou mais?

Machado surgiu no momento em que o romance se consolidava no nosso país. Ele não tinha, portanto, como não estar ligado aos românticos do seu tempo, tais como Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida. No entanto, desde o primeiro momento, Machado de Assis não foi um romântico autêntico, por ter feito uso, em muitos dos seus textos, da ironia, do desencanto e de uma visão do amor que nada tem de idealizadora. Mais tarde, o escritor também se negou a ser realista, que para ele era estreito e limitado a aspectos exteriores. Machado gostava de trabalhar com a subjetividade humana, retirando-lhe o que há de ruim no ser humano, mas também a possibilidade de criação e reflexão, o que preserva algo do romantismo. Então eu diria que Machado foi um pseudo romântico e um pseudo realista. Ele não se enquadrou em nenhuma escola porque era completamente refratário a essa idéia de organização dos criadores em torno de um caminho estético bem delineado. E por isso, desde o inicio, produziu com muita singularidade.

Olhar Virtual: Por que o livro Memórias póstumas de Brás Cubas marcou o início da sua produção realista?

Porque nesse livro surge com força total aquilo que já estava sendo semeado nos romances anteriores, o desencanto. Por se tratar de um defunto autor, ele pode olhar para a humanidade e colocá-la sob perspectiva, uma vez que não há o que perder. Ele ridiculariza todos os personagens, mostrando a pequenez humana no tocante à ética. O ser humano está vazio de ética, nasce mais com pendor para a maldade do que para bondade e todas as instituições criadas pelos homens (escola, igreja, poder judiciário) apenas revelam que de nascimento, o homem traz o autocentramento, o egoísmo, e que depois tenta atenuar com utopias, ideais e essas outras instituições. Machado mostra o fracasso. Brás Cubas é um parasita, sem ética, moral ou consistência política. E que, portanto, só tem a oferecer como narrador ao leitor o trabalho com a linguagem, a forma. É como se neste livro Machado trouxesse toda a sua desilusão para com o ser humano e contrapusesse a isso à beleza formal. Dessa subjetividade humana sai muita maldade, mas é possível também sair o belo.

Olhar Virtual: Que características estão presentes na obra de Machado de Assis?

Em suas obras aparece a ironia, a subjetividade humana, o dialogismo com o leitor, que se sente atraído para a narrativa, entre outras. Essa é uma estratégia do narrador machadiano para oferecer ao leitor aquilo que ele não está acostumado a receber e freqüentemente não quer, visto que suas expectativas giram em torno de histórias lineares e com finais felizes, o que não aparece nas obras de Machado. Ele interrompe o fluxo narrativo a todo o momento para refletir.

Olhar Virtual: O que faz de Machado de Assis um escritor tão importante para a literatura brasileira?

Ele foi pioneiro em muitos aspectos. Entre seus feitos podemos citar a consolidação da crônica no país, tratando de assuntos da época e teorizando sobre ela; a fundamentação da crítica, com a definição de alguns parâmetros a serem respeitados por quem se lançasse crítico de modo a analisar esse objeto com imparcialidade, honestidade e profundidade; a modernização do conto, tornando-o mais consistente e conciso; e a combinação entre ficção e filosofia, o que lhe permitiu conectar o romance brasileiro ao que de melhor se produzia na Europa. Por essas razões, não teria como não ser considerado importante dentro da literatura brasileira.

Olhar Virtual: Qual era sua intenção ao criar a Academia Brasileira de Letras?

O ímpeto dele era o de congregar, porque ele sabia já, por experiência própria, da importância de um jovem escritor estar entre os mais “carimbados”. Seu objetivo era fomentar a literatura brasileira que ele dizia que estava apenas surgindo. No entanto, ela acabou criando uma cocha conservadora que não diz respeito a Machado, um inquieto.

Olhar Virtual: Machado de Assis foi influenciado por quais escritores?

Ele tinha em filósofos, poetas, dramaturgos e ficcionistas muitos nomes que absorvia sem cessar. Adquiriu a ironia do escritor francês Montaigne, o pessimismo do filósofo alemão Schopenhauer, o anticlericalismo do Voltaire, o diálogo com o leitor do irlandês Laurence Sterne e a construção contraditória dos personagens de Shakespeare. No entanto, quando se fala apenas de influência, imagina-se uma preponderância do antecessor passível, cujo resultado é uma repetição daquilo que se fez antes. O caso é que Machado nunca repetiu ninguém.

Olhar Virtual: Alguns estudiosos o compararam com Fiódor Dostoiévski, um dos maiores escritores da literatura russa. Em que medida isso é pertinente?

Esse pensador, como outros escritores russos, trouxe o adensamento para a ficção, como se ela e a reflexão caminhassem juntas, de forma equilibrada. Dostoiévski e outros se ativeram naquilo que Machado se ateve que é a podridão, a dor da alma. Há muita coisa em comum entre eles, como o esforço em produzir uma literatura singular e marcante, a perda da fé e a aposta na estética e na filosofia.

Olhar Virtual: Que tipo de críticas Machado costumava fazer a outros escritores?

Ele era um critico implacável do uso exagerado de adjetivos, da prosa pomposa, do mau gosto, do cultivo aos aspectos mais escandalosos para prender o público. Machado não queria oferecer em seus textos aquilo que o mundo já oferecia, mas sim o trabalho da linguagem. O escritor queria proporcionar o prazer estético e por isso criticava duramente os escritores ignorantes, fracos e medíocres que tratavam o leitor, em última instância, como consumidor.

Olhar Virtual: Machado de Assis foi um escritor polêmico e alvo de duras críticas. A que elas se referiam?

Pelo receio de parecer óbvio demais, Machado não se preocupava em demonstrar a nacionalidade em suas obras. Ele costumava afirmar que impreterivelmente suas obras eram brasileiras. No entanto, durante o romantismo, os intelectuais defendiam uma literatura que difundisse o ideal de pátria. Outra crítica que se fazia era a de que suas obras eram demasiado cerebrais por não cultivarem a paixão e que suas poesias continham um tom narrativo exagerado, reclamação que até hoje se faz.

Olhar Virtual: Como o senhor avalia o ensino de Machado de Assis nas escolas hoje?

Todo trabalho que nós fazemos na graduação da Faculdade de Letras é para formar professores que se entreguem de forma desarmada, sem qualquer enquadramento prévio a textos como o de Machado. Quando olhamos para o ensino médio hoje, infelizmente, devido a dificuldades de formação na própria universidade, o que vemos é que as pessoas têm medo de se entregar porque podem se perder. Vêm armadas e impedem a relação que os alunos poderiam ter com o texto. Falta ousadia e isso dificulta que os alunos vejam o inquieto que era Machado. A literatura dele é toda crítica, fala mal da igreja, dos políticos e das forças armadas. E dificilmente um garoto hoje será mais crítico do que Machado foi a vida inteira. Acredito que ainda temos muito a fazer para que os professores de literatura tenham essa relação que o próprio Machado pede: um leitor que se aproxime da idéia de cidadão, um leitor que tenha pensamento crítico.