Olho no Olho

Ensaio sobre a cegueira causa polêmica nos EUA

Raquel Gonzalez

imagem olho no olho

O filme Ensaio sobre a cegueira, baseado na obra literária homônima do Nobel José Saramago, imagina uma epidemia misteriosa que torna as pessoas cegas – mas uma cegueira diferente, branca – que resulta em um colapso da ordem social. O livro foi elogiado por seu uso da cegueira como uma metáfora para a falta de comunicação e respeito à dignidade humana na sociedade contemporânea e, segundo a produtora Miramax, houve um trabalho dedicado para preservar as intenções e a ressonância do livro.

O filme, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, causou, contudo, bastante polêmica nos Estados Unidos. Marc Maurer, presidente da Federação Nacional dos Cegos, declarou à rede de televisão CNN que o filme “representa os cegos como monstros” e acusou a obra de não ajudar na integração dos deficientes visuais junto à sociedade. A Federação anunciou que pretende protestar nos cinemas norte-americanos que exibirem o filme com cartazes com frases do tipo: Eu não sou um ator, mas interpreto um cego na vida real.

Diante da questão, o Olhar Virtual conversou com Marcos Henrique Lima, jornalista, aluno de Rádio e TV da Escola de Comunicação Social da UFRJ e deficiente visual, e Teresa Cristina Cerdeira, professora da Faculdade de Letras, para debater a forma como o filme retratou a cegueira e tentar entender o porquê da polêmica causada na Federação Nacional dos Cegos estadunidense.

 

Marcos Henrique Lima
Jornalista e aluno da Escola
de Comunicação da UFRJ

A cegueira no romance é apenas um detalhe. É um detalhe da metáfora do autor. Não importa se é retratado o cego, o mudo ou o surdo; ele quer mostrar uma perversão humana e escolheu a cegueira para ilustrá-la. Ficou bem claro para mim desde o princípio. Eu não me vi retratado como deficiente visual em nenhum momento. Aquilo não é meu retrato. É o retrato da humanidade de uma maneira geral.

O fato de as pessoas terem um distúrbio de comportamento – por terem a certeza de que ninguém está os vendo – e a própria animalização do homem é o que, acredito, Saramago pretendia representar no romance. E o cego é uma metáfora para dizer que a sociedade está cega.

O filme, em si, foge um pouco à minha alçada. Parece-me que as imagens foram feitas de uma maneira muito especial, um bom trabalho técnico que escapa, entretanto, da minha análise. Gostei muito do filme e achei que o diretor, Fernando Meirelles, conseguiu refletir bem o romance de Saramago. Em minha opinião, dificilmente bons livros são bem retratados nas versões cinematográficas, mas, nesse caso, o filme mostrou-se melhor do que eu esperava.

Apesar de não concordar com a visão que se tem da sociedade norte-americana, como preconceituosa e com rasa visão do restante do mundo, com as atitudes presenciadas – protesto da Federação Nacional de Cegos dos Estados Unidos contra o filme – repensei essa posição. Como eles não entenderam que a cegueira no filme é uma metáfora? Achei bastante óbvio. E mesmo que não fosse: se cada um reclamar quando é retratado em um filme, não teríamos mais como retratar ninguém. Talvez as cenas fortes que mostram um comportamento animalesco dos personagens tenha causado essa polêmica. A Federação dos Cegos pode ter ficado receosa por tais imagens serem associados aos cegos. Mas como, para mim, o filme está longe de falar de cegos – mas sim da humanidade – e a cegueira é só um meio de contar a história, não me senti nem um pouco ofendido.

 

Teresa Cristina Cerdeira
Professora da Faculdade de Letras

Ensaio sobre a cegueira, um dos maiores romances de Saramago, é uma reflexão muito séria sobre a situação da humanidade nesse início de milênio. A imagem que o autor elege da cegueira é evidentemente uma metáfora para ilustrar a incompreensão do homem diante do mundo. Os homens já estariam, de tal modo, embrutecidos que não se dão conta que estão cegos. Há uma importante frase no livro que retrata a percepção de um cego ao se dar conta de que eles já estavam cegos quando se cegaram, por exemplo. Essa cegueira especial, a cegueira branca, justamente faz a diferença em relação a uma cegueira “referencial”. O que temos no filme é uma cegueira metafórica, uma cegueira que pode existir num filme de ficção.

Acho que o fato de, nos Estados Unidos, alguns cegos terem se colocado contra o filme demonstra, talvez, uma imagem de sociedade que pode debater questões: você pode estar a favor ou contra, mas eles possuem uma espécie de reflexo interno democrático. As pessoas são capazes de lutar por suas causas. Eu não estou, absolutamente, de acordo com a opinião desse grupo que tomou mal a cegueira retratada por Saramago. No entanto, entendo que eles têm lugar para discutir. Parece-me, contudo, que tomaram a cegueira como uma questão literal.

Em situações radicais, de calamidade, todos os sentidos perdem os limites, as cenas de animalização do homem não são retratadas pelo fato dos personagens estarem cegos. Saramago não faz uma reflexão sobre cegos, mas sim sobre o embrutecimento do homem diante da leitura do mundo. Foi preciso chocá-los a tal ponto, torná-los verdadeiramente cegos, para que pudessem recomeçar a ver. Acredito, então, que esse ensaio sobre a cegueira é, na verdade, um ensaio sobre ensinar a viver. Existe muito mais um modo de aprender a olhar, não como uma punição, mas ao contrário, um modo de aprendizado. E isso tem muito a ver com o modo como Saramago pensa o mundo: ele é um homem de esquerda e que tem seu projeto utópico.

Eu acho o romance belíssimo e o filme conseguiu retratá-lo muito bem. O filme possui certa delicadeza no tratamento das cenas muito violentas e utiliza o branco, o desfocado e uma série de estratégias para não tornar o filme super-realista. É claro que há determinadas cenas que são realmente bastante violentas, mas o diretor foi capaz de suavizá-las e foi feliz no resultado final.