Entrelinhas

Retórica e Mídia

Nathalia Barbosa


Tirar a retórica do lugar comum é a intenção de Fernanda Lima e Igor Sacramento, doutorandos da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO). Eles são os organizadores de Retórica e Mídia: estudos ibero-brasileiros. O livro é uma reunião de textos de autores brasileiros, portugueses e espanhóis sobre a retórica nos meios de comunicação e pretende suprir a carência de estudos sobre o assunto no país. Dividida em três partes – “Fundamentos da Retórica”, “A Retórica Midiatizada” e “A Retórica Jornalística” –, a coletânea articula reflexão teórica e prática analítica, mostrando que a retórica não é uma prática vazia de significação, mas sim um mecanismo intrínseco à comunicação.  

Olhar Virtual: Como surgiu a ideia de fazer uma coletânea sobre retórica? E por que textos apenas em três nacionalidades – brasileiros, espanhóis e portugueses?

Igor Sacramento: Em primeiro lugar, há dois motivos: um motivo bem operacional e outro mais geral. O operacional foi porque eu e Fernanda somos alunos de doutorado da ECO e, no primeiro semestre de 2008, estávamos fazendo uma disciplina com o professor Muniz Sodré, que, já sabendo do nosso interesse pelos estudos de Retórica, pediu que fizéssemos um seminário sobre a retórica no Jornalismo.

Após o trabalho, percebemos que o nosso maior interesse sobre Retórica, nosso aprofundamento, não é nos clássicos – Aristóteles, Platão, Cícero, autores clássicos da Retórica. Queríamos fazer, para a disciplina, uma relação com estudos contemporâneos sobre a Retórica das mídias, sobre o Jornalismo, especificamente. E a gente se deparou com um vácuo. Não existem pesquisas no campo da Comunicação no Brasil que tomem a Retórica como um campo teórico. O que acontece muito aqui, no campo da Comunicação, é tomar a Retórica como prática, uma prática enganosa e vazia. Ou seja, se fala muito da retórica do político, da retórica da propaganda, da retórica como um adjetivo que qualifica aquela prática discursiva como sendo vazia de significação ou como um mero adorno, um mero enfeite na linguagem.

O que a gente questionou é que a Retórica não é só isso: ela é tanto a prática discursiva quanto a teoria sobre essa prática discursiva. A Retórica é, na verdade, uma teoria, uma técnica e uma prática de comunicação pública em várias instâncias – entendendo o público, não só como um auditório, mas também como uma audiência. A entrevista que  estamos fazendo aqui também é um exercício retórico, de estabelecimento de verossimilhança, de confiança, de persuasão, de opinião. Então, esse espaço não é meramente instrumental. A Retórica constitui a própria linguagem e, nesse sentido, as próprias práticas de Comunicação.

E aí, nós passamos para a questão geral do livro. O que a gente passou a achar foram muitos pesquisadores espanhóis e portugueses da Comunicação, ou que estudam Comunicação dentro de outras áreas, como Letras e Filosofia, e  estudam muito  especialmente a comunicação midiática, a partir da Retórica. Nós achamos muitos textos, livros, revistas, anais de congressos que trabalham com essa dimensão. Então, nós achamos interessante fazer um livro em que pudéssemos colocar os pesquisadores brasileiros em diálogo com esses trabalhos sobre Retórica que já são, em geral, bem mais consolidados que os nossos,  têm uma tradição, que são os ibéricos.
Olhar Virtual: Como foi o processo de seleção dos textos? O que há em comum entre eles?

Igor Sacramento: O processo de seleção foi mais em relação ao que os autores tinham para contribuir. O que nos preocupou muito, e essa é a ideia principal do livro, foi  entender a Retórica não como adjetivo, mas como substantivo; entender a Retórica não como o adjetivo de uma prática, mas uma prática a partir da qual se pode pensar a própria Retórica teoricamente. A gente tem duas retóricas: uma “retórica” e uma “Retórica”. A retórica – com “r” minúsculo – seria a prática e a Retórica – com “r” maiúsculo – seria a disciplina. Então, o que nós temos é que entender a retórica, a retórica midiática, a partir da Retórica, usando seu vasto campo teórico, que vem desde os estudos clássicos, mas também tem a nova retórica com Perelman, com vários outros autores, franceses especialmente – Perelman não era francês, mas ele tem uma tradição estudando Retórica.

A gente pensou basicamente isso: a seleção não foi, especialmente em se falando de espanhóis e portugueses, de professores que nós conhecíamos pessoalmente, na maioria dos casos. Ao longo do processo, nós chegamos a conhecer alguns. A Fernanda, por conta de um congresso, acabou indo a Portugal e conheceu alguns dos autores. Mas o contato inicial foi todo por e-mail, porque a gente conhecia alguns textos,  alguns livros e alguma coisa que sinalizava para essa dimensão. O que mais impressionou a gente é que, nos estudos de Comunicação no Brasil, em geral, há uma tendência de entender a Retórica exclusivamente como sendo, por um lado, uma arte da persuasão. E aí está o engano: como algo fingido da verdade, e, por outro lado, como a arte de falar bem, confundindo-se aí com uma oratória – falar bem ou escrever bem. Nós queríamos, na verdade, complexificar esse entendimento de retórica, que é muito mais que isso.

 Quando a gente pensa em verossimilhança,  em confiança, em credibilidade, em ética, nas emoções do público, no convencimento do público ou na própria recusa do público, isso tudo está englobado na retórica. Ou até mesmo quando a gente pensa no próprio jornalismo digital, como pensar as próprias práticas midiáticas a partir da própria Retórica; essa foi a ideia central do livro.

Olhar Virtual: O livro distingue retórica midiática de retórica midiatizada. Qual a diferença entre elas?

Igor Sacramento: São muitas as diferenças. Mas, basicamente, a retórica midiática diz respeito aos processos persuasivos retóricos produzidos pelas mídias. Já há vários estudos sobre isso. Roland Barthes é um dos maiores especialistas em entender a retórica midiática – você pode pensar na retórica da fotografia, na retórica do cinema, na retórica da imagem. Ele se preocupava era com a estrutura narrativa daquela própria produção midiática e como ela possuía elementos persuasivos linguísticos verbais e não verbais. A preocupação dele era mais ligada ao próprio meio.

Diferente disso, existem outros autores, que eu posso dividir em duas correntes, que pensam nessa retórica midiatizada. Primeira,  uma corrente que tem um texto que está no nosso livro, do Antonio Fidalgo, em que ele vai entender a retórica midiatizada a partir de como os processos de comunicação alteram os processos persuasivos. Ele quer entender, com isso, como a vigência da centralidade dos meios de comunicação na sociedade vai alterar os próprios processos tanto de votação, de eleição, de estruturação de propagandas, de estruturação de textos jornalísticos, de estruturação até mesmo das relações interpessoais.

E há outra abordagem sobre a retórica midiatizada que não diz respeito exclusivamente a isso, mas  à hibridação entre as retóricas tradicionais e as retóricas midiáticas. É esse campo de estudo – diferente do estabelecido por Fidalgo – inaugurado, de certa forma, pelo professor Muniz Sodré, e que eu encampo – e Fernanda também –, que pensa em como se constrói um novo regime do sujeito em relação à verdade e à realidade, e em como a retórica midiatizada é central nessa nova mudança.

Por exemplo: a hipertrofia do ethos, que quer dizer que todos podem ser autores, todos podem ser produtores de mídias. Esse alargamento do ethos, ou seja, da faculdade de ser um orador, um enunciador do processo comunicativo,  é, obviamente, um processo de retórica midiatizada; você não precisa mais do jornal para poder ter voz – você pode fazer sua própria voz postando um vídeo no youtube, ou criando um blog ou fazendo um vídeo no seu celular e colocando no festival de cinema. Isso reconfigura não só o lugar da autoria, mas o próprio lugar da enunciação.

Se antes havia uma enunciação midiática, para massas, de poucos para muitos, hoje há uma pulverização de possibilidades: os antes espectadores do espetáculo midiático agora podem ser também produtores desse espetáculo. É pensar essa mudança, e como isso reconfigura o próprio sistema retórico já imaginado desde Aristóteles, que envolvia o ethos – que corresponde ao orador – o logos – que corresponde à estrutura da mensagem e à própria argumentação na qual ela está envolvida – e o phatos – que corresponde às emoções e às paixões mobilizadas pelo público durante a enunciação. Então, o que a gente observa é que há uma hipertrofia do ethos em relação a essas outras dimensões que constituem o sistema retórico.

Olhar Virtual: Nesse contexto de retórica midiatizada, o livro sugere uma “morte da hipotipose”. O que isso quer dizer?

Igor Sacramento: Hipotipose é uma figura retórica que corresponde à construção pictórica da imagem a partir da palavra. Um exemplo concreto é quando você conta alguma coisa que você viu e faz uso de descrições que permitam que o seu interlocutor imagine a imagem que você, pela palavra, está querendo construir. A gente pode pensar que em um auditório, em um julgamento, ou até mesmo nas relações interpessoais, é necessário construir essas imagens das palavras para persuadir, convencer, para estabelecer verossimilhança com aquilo que você está falando. Tanto há essa hipotipose de natureza oral – em que, dependendo do nível de descrição, você pode construir mais ou menos imagens em relação ao que fala – como há, também, uma hipotipose em outro nível, pelas palavras escritas. Você está lendo livro e, dependendo das descrições e das suas próprias mediações, você pode imaginar como é o personagem, a casa em que ele está. É isso que caracteriza a figura da hipotipose: a partir da palavra você produz imagens.

Alguns autores acreditam que, com a vigência da imagem técnica, haveria a morte da hipotipose. Quer dizer, esse espaço para a imaginação estaria rompido, muito por conta de que você não precisa mais demonstrar, você só precisa mostrar. Se eu fiz uma viagem e conto para você como foi, eu vou contando e você vai criando a sua imagem a partir da minha descrição. Mas eu posso também só mostrar as 300 fotos que eu tirei com a minha máquina digital, postando no meu Orkut e no meu Facebook, ou quaisquer desses outros aparatos em que eu possa socializar essas imagens e mostrar para todos os meus amigos e para mais quem quer que seja. Em certo sentido, você não precisa mais demonstrar.

Mas, ao mesmo tempo em que há alguns autores como o próprio Antonio Fidalgo, que está no livro, há outros como o Sérgio Trein – que também está lá – que não acreditam nessa morte da hipotipose e acham que, por exemplo, o rádio seria um dos meios de comunicação que a mantém. Muito se fala em “imagens sonoras”: você produz imagens a partir dos sons que constrói. Isso está não só nos programas dramatúrgicos de rádio – como as telenovelas –, mas também nos próprios programas jornalísticos, que procuram usar determinadas palavras que possam produzir essas imagens e construir uma ambiência a partir das imagens construídas pelo próprio som.

Esse seria um dos exemplos da permanência, e não da morte da hipotipose. Há uma tensão aí: alguns autores acreditam que ela morre com a vigência dos meios de comunicação, especialmente dos meios de comunicação audiovisuais, e outros acham que não, que o rádio seria um exemplo de permanência da hipotipose.

 Olhar Virtual: Como é possível relacionar a retórica ao discurso jornalístico?

Igor Sacramento: É possível relacionar em vários sentidos. Primeiro, se a gente for pensar na própria estruturação do discurso jornalístico moderno em credibilidade, em neutralidade, objetividade, imparcialidade. Todos esses princípios que configuram o discurso do jornalismo moderno têm intrinsecamente neles princípios retóricos de estabelecimento de confiança, de conquista do público. Então, esse público vai passar a confiar, a crer no discurso jornalístico a partir desse acordo às vezes tácito, às vezes explícito, de que o que está no jornal é digno de confiança porque você tem determinados métodos de “captação” da realidade, ou seja, uma produção mais segura, mais confiável da própria realidade. Você tem todos esses métodos, o lead, o sublead, o depoimento, a entrevista, a prova – seja ela fotográfica ou em vídeo –, que se configuram como recursos jornalísticos de atestação da verdade, e isso é extremamente retórico.

Como eu disse antes, se a retórica é técnica, teoria e prática de comunicação pública, por que essa necessidade? É justamente para conquistar e manter a confiança do público. Mas se a gente pensa em um jornalismo contemporâneo – que está em transição –, quando a gente pensa em novos formatos jornalísticos que vão se misturando com entretenimento – como faz o CQC, por exemplo –, mesmo questionando os princípios de objetividade, de parcialidade, de neutralidade, eles ainda afirmam ser o jornalismo  o quarto poder,  uma instância de vigilância da sociedade. E isso muito fundamenta o jornalismo moderno que se faz no mundo, especialmente nos Estados Unidos, desde o século XX, e no Brasil, especialmente a partir dos anos 50, o jornalismo como esse lugar de vigilância da sociedade e de suas mazelas. Isso também é uma estratégia retórica que usa elementos linguísticos e discursivos que possam permitir a conquista, a credibilidade, a confiança do público e, além disso, construir um próprio ethos jornalístico, ou seja, uma imagem jornalística que vai ser legitimada ou até mesmo recusada pelos diferentes públicos.
Tem uma parte do livro que se dedica especialmente à retórica jornalística. A gente tem vários textos falando desde a retórica do jornalismo em relação à imprensa até o jornalismo digital, pensando em como se configura a retórica jornalística em diferentes mídias.

Olhar Virtual: É possível traçar o perfil de uma época analisando a Retórica nos discursos nela presentes?

Igor Sacramento: Acho que sim, por uma questão muito interessante e é justamente o que nós pretendemos com esse livro: mostrar como a Retórica constitui a sociedade. Por isso é muito pertinente a obra. O que nós propomos é questionar quais retóricas se manifestam em uma sociedade midiatizada. Esse é o ponto de partida do livro. Então, a gente concorda,  acha que, realmente, o discurso – e aí até mesmo a Retórica – não é mero reflexo da sociedade. Ele é muito mais do que isso:  constitui a sociedade e  é histórico. Ele é constitutivo e constituidor de uma época, de um contexto específico. Você pode, sim, a partir de determinadas retóricas, reconhecer a especificidade de um momento, de uma época. O discurso, assim como a retórica, é balizado pela sua época, pelas possibilidades de uma época. Não existe um discurso à frente, atrás ou acima de sua época. Todo discurso e toda retórica são constituídos situcionalmente e historicamente. Na verdade, a questão da retórica não é simplesmente o que se diz. Mas muito mais como e por que se diz daquela maneira. E a resposta está no contexto da época, tanto no contexto situacional,  no institucional, quanto no sociocultural mais amplo. A pergunta é por que se diz daquela maneira, quais  interesses estão envolvidos ali para se dizer de uma maneira e não de outra.