No Foco

Os loucos da praia chamada saudade

Diogo Cunha

Foto: Bárbara Futuro
O carnavalesco Milton Cunha levará o Palácio Universitário para a Marquês de Sapucaí.

A partir das 6 horas da manhã do domingo de carnaval (14 de fevereiro), parte da tradição da UFRJ desfilará pela Marquês de Sapucaí. A Acadêmicos do Cubango, escola do grupo A do carnaval carioca, apresentará na passarela do samba a história do prédio do Palácio Universitário. Com o enredo intitulado “Os loucos da praia chamada saudade”, a escola niteroiense contará a trajetória da edificação de estilo neoclássico, atualmente situada na esquina das ruas Venceslau Brás e Pasteur, construída em meados do século XIX para abrigar o hospício D. Pedro II.
 
A celebração ao prédio é também mais uma homenagem ao Marquês de Sapucaí. Explica-se: o homem que dá nome à avenida em que desfilam as escolas de samba foi quem elaborou e assinou o decreto promulgado pelo jovem imperador D. Pedro II, então com 14 anos, em 1941, instituindo a construção de um hospício para o tratamento de doentes mentais, onde deveriam ser aplicados os conhecimentos da nascente Psiquiatria.

Hospício Pedro II até 1890, Hospício Nacional de Alienados até 1937, Hospital Psiquiátrico da Praia Vermelha até 1944 e, finalmente, Universidade do Brasil a partir de 1949, o prédio representa para o carnavalesco da Cubango um meio para se enxergar o Brasil: “Através da história deste prédio eu consigo pensar como o Brasil se comportou em relação ao seu patrimônio histórico, ao tratamento de seus loucos, à qualificação de sua classe operária. Este prédio tem um pouco de loucura, um pouco de história, um pouco de cultura e, portanto, é a cara do Brasil”, comenta Milton Cunha, carnavalesco responsável pelo enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Cubango, em entrevista à WebTV da UFRJ. “Eu gosto de enredos que sejam portas abertas para a gente pensar a grandeza do Brasil”, completa.

Apesar de o título sugerir, o enredo não trata apenas do prédio como hospício. O desfile trará toda a história do edifício, abordada pelo viés da loucura, confrontando-a e associando-a à opressão e à repressão. Assim, há a associação da opressão aos loucos que tomavam eletrochoque e usavam camisas de força com a repressão aos “loucos” estudantes que em 1968 foram cercados pelos tanques do exército no Palácio Universitário.  “Pelos corredores deste prédio passam os últimos grandes embates brasileiros entre a loucura de sua população e a tentativa de controle de seus governantes”, explica Cunha na introdução do enredo. Há, portanto, no enredo, a ampliação da loucura para outros atores e também para a própria realidade brasileira. A loucura não é só dos loucos, é também dos estudantes, dos médicos do hospício, dos militares, é da história do Brasil. Nada mais carnavalesco. “Sejamos realistas, façamos o impossível: vamos rimar governo e poder com loucura e carnaval, coisa tão natural! Loucos e estudantes; alienados e reitores; que camisa de força os unirá?”, brada o carnavalesco na apresentação do enredo.

A história do hospício

O Hospício de Pedro II, inaugurado em 1852, onze anos após o decreto do Marquês de Sapucaí, é um marco da tentativa de o governo imperial transformar o Brasil em um país europeizado, seguindo o conceito de “ordem” do Velho Mundo. “Há na política imperial um projeto de construção civilizatória”, comenta Antônio José Barbosa de Oliveira, professor de Biblioteconomia da UFRJ. O Império queria acabar com os resquícios da colônia, construir um Brasil europeu, sobretudo para os europeus, e a localização do prédio é sintomática. “Aquele prédio era a única construção suntuosa existente no lugar naquele período do século XIX, ele está na entrada da Baía de Guanabara. Tão logo os navios chegassem da Europa e passassem por trás do Pão de Açúcar, aquele prédio neoclássico seria a primeira vista que os visitantes teriam de uma edificação”, revela.
                
Por outro lado, o Palácio representa a assimilação no Brasil da evolução da Medicina com o surgimento da Psiquiatria e a vontade de pôr em prática os métodos dessa nova ciência. “Esse prédio é mais que um hospício, ele é a materialização de uma nova forma de a Medicina conceber o doente mental e trazer a Psiquiatria como uma especialidade”, explica Barbosa. Além disso, o professor aponta uma razão particular para a construção de tão suntuosa edificação como abrigo dos loucos: o tratamento da loucura deveria interessar sobremaneira aos membros da Família Imperial, já que a bisavó de D. Pedro, Dona Maria, havia enlouquecido, e seu pai, D. Pedro I, era epilético.

O hospício recolhe então os loucos que antes vagavam pelas ruas ou viviam enclausurados nos porões da Santa Casa de Misericórdia, dando a eles um tratamento científico. Para Milton Cunha, a iniciativa do Marquês de Sapucaí é nobre. “O Marquês é movido por uma vontade de tirar os loucos dos porões da Santa Casa de Misericórdia e dar a eles essa coisa que o neoclássico estava trazendo, de Igualité, Fraternité. O Marquês é movido pela humanidade, pela filantropia, isso é lindo”, exalta.

Linda não era a realidade dos alienados no novo lar. As oficinas e terapias ocupacionais conviviam com outros procedimentos violentos da nova ciência: eletrochoques, lobotomia, camisas de força, clausura. Para Barbosa, a questão da opressão deve ser relativizada, e não entendida com os preconceitos atuais. “Se se pensa no hospício como um lugar de sujeição, de repressão, se vale de valores que se tem hoje; se nos remetermos ao século XIX, ele representava o que se tinha de ponta em tratamento psiquiátrico”, analisa. Estas duas possibilidades distintas de pensar o prédio só favorecem uma abordagem carnavalesca, que sempre joga com a ambiguidade.

Outra forma de pensar o hospício, segundo Cunha, é como reprodutor da estrutura social vigente. Aí, a opressão também pode ser enxergada na divisão de classes existente entre os alienados. Os pacientes das classes altas tinham quarto individual ou duplo e se entretinham com pequenos trabalhos manuais, enquanto os de classes inferiores trabalhavam na cozinha, na manutenção, na jardinagem. Para Cunha, o prédio oferece muitas possibilidades de leitura. “Este prédio é rico, polifônico, tem muitas vozes, muitas possibilidades de recortes, de leituras”, opina.

Possibilidades acrescidas a partir da instalação da Universidade do Brasil, em 1949. Antes, o Hospício D. Pedro II, o “Palácio dos loucos”, como era chamado pela população, se tornou, em 1890, por ocasião do fim da monarquia, Hospício Nacional de Alienados. É com esta denominação que o prédio abrigará personagens ilustres como o escritor Lima Barreto, o músico Ernesto Nazareth, o teatrólogo Qorpo Santo e o líder da revolta da chibata João Cândido, o “Almirante Negro”.

É também como Hospício Nacional de Alienados que o prédio entra num estágio de deterioração e os loucos passam a sofrer com a superlotação. Este estágio só vem a ser revertido a partir de 1903, quando Juliano Moreira assume a direção do lugar e reforma o prédio. A gestão de Moreira também promove mudanças no tratamento dos loucos, dando mais espaço para as terapias ocupacionais do que aos eletrochoques. Em 1930, Moreira foi destituído pelo governo provisório de Vargas. Em 1935, a doutora Nise da Silveira, grande nome da Psiquiatria no mundo, foi presa no prédio, acusada de simpatizar com a Intentona Comunista. Trinta e três anos antes de os estudantes serem vítimas da ditadura, eis mais um exemplo de como o prédio pode ser visto como metáfora da opressão.

Em 1937, outra mudança: o hospício se torna Hospital Psiquiátrico da Praia Vermelha. A partir de 1939, o hospital passa por uma nova crise de superlotação, que vai decretar seu fim, em 1944, com a transferência dos três mil internos para outros hospitais. De 1944 a 1948, o destino do deteriorado prédio neoclássico é incerto. Agora, só se ouvem as vozes e só se veem os vultos dos fantasmas, estes pintados por Iberê Camargo, fixando em tela a angústia entorpecente do palácio abandonado.

O Palácio Universitário

Em 1948, após o reitor da Universidade do Brasil ter declarado que a Universidade tinha a “obrigação cívica de resguardar um patrimônio da arquitetura nacional”, se iniciam as obras da reforma que transformará o antigo Hospício Pedro II de sede da Reitoria da Universidade do Brasil em Palácio Universitário. Barbosa explica que as obras tiveram a clara intenção de transformar o hospício em palácio: “A fachada foi modificada para reforçar a dimensão clássica greco-romana. O Pedro Calmon tentou a todo custo retirar qualquer lembrança do hospício, daí Palácio Universitário. O prédio só passa a ter a denominação oficial de palácio com a universidade”. Sobre essa adequação à universidade, Barbosa questiona: “Que concepção de universidade era essa que julgou que uma estrutura arquitetônica construída para ser um hospício pudesse tão facilmente abrigar uma universidade? A denominação de Palácio Universitário tem a ver com uma concepção de universidade europeia medieval; está se pensando no modelo francês, e de Coimbra”, comenta.

É como universidade que o prédio é cercado pelos canhões da ditadura militar em 1968. Antes dos canhões, em 1960, o teatro de arena da Faculdade de Arquitetura recebe a “Noite do amor, do sorriso e da flor”, um dos primeiros shows de Bossa Nova do Brasil. No início dos anos 70, a Reitoria se transfere para a Cidade Universitária, e o Palácio passa a abrigar o Fórum de Ciência e Cultura (FCC/UFRJ). Em 1972, o prédio finalmente é tombado. Hoje o Palácio Universitário sedia os cursos de Comunicação Social, Educação, Economia, Administração e Ciências Contábeis.

Um prédio que abriga múltiplos sentidos, situado às margens da Praia da Saudade. Esses são os motivos para a Cubango levar o palácio à Avenida. “A palavra saudade me movia a andar com o enredo. É o título perfeito: ‘Os loucos da praia chamada saudade’; loucos, estudantes, professores, reitores, diretores, médicos, enfermeiros, camisas de força, exército cercando o prédio, tanques, a revolução de 64; um bando de loucos, com saudades de algo”, finaliza Milton Cunha.

Samba-enredo do Grêmio Recreativo Acadêmicos do Cubango:

Os loucos da praia chamada saudade

Autores: Sardinha, Carlinhos da Penha, Junior Duarte, Diego Nicolau, Dílson Marimba e Raphael Prates

“O TRONO ENLOUQUECEU
ESSA EPOPEIA DECIFRE OU LHE DEVORA
O PALÁCIO SE ERGUEU NO TOQUE DO MARQUÊS
E O MONARCA NESSA ZORRA DEITA E ROLA
INSANO QUE SOU, VIAJEI
E VI A BELEZA MAQUIAR A CLAUSURA
OS LOUCOS DE PEDRA FAZENDO A HISTÓRIA
CAMISAS DE FORÇA TOLHENDO MEMÓRIAS
E A NOVA BANANA, TREMENDA BADERNA
MAIS DOIDO É O POVO OU QUEM TE GOVERNA?

TÁ LOTADO DE MALUCO... FECHOU!
ASSOMBRADO, O ARTISTA PINTOU
JÁ É HORA DA VIRADA NESSE SURTO IMAGINÁRIO!!!
TÔ POR CONTA DO CENÁRIO, SOU UM LOUCO SONHADOR

RENASCE DAS CINZAS PRA VIDA
BOSSA NOVA E UM HINO CONTRA A OPRESSÃO
EM UMA NUDEZ INCONTIDA
DA DURA QUE DITA, SANGRANDO A NAÇÃO
CLAREIA MINERVA ASSANHADA
ERGUI A BANDEIRA NAS DIRETAS JÁ
PRA VER MEU PAÍS MAIS FELIZ
DE CARA PINTADA, EU FUI PROTESTAR
E O MEU BRASIL PINEL DESPERTA PRA FOLIA
SAMBANDO NO RAIAR DE UM NOVO DIA

É MAIS QUE PAIXÃO, BEIRANDO A LOUCURA
VESTI VERDE E BRANCO, NINGUÉM ME SEGURA
CUBANGO ENCANTA E TRAZ LIBERDADE
AOS LOUCOS DA PRAIA CHAMADA SAUDADE”