De Olho na Mídia

O carnaval e a mídia

Taysa Coelho

Ilustra: Caio Monteiro

“Em fevereiro tem carnaval”, já cantava Jorge Benjor. A festa popular mais democrática do país é um dos momentos mais aguardados do calendário carioca. Se para muitos a midiatização do carnaval ameaça a espontaneidade e a anarquia pelas quais se caracteriza o espetáculo, para Maria Laura Calvalcanti, professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), o conceito “popular” deve ser revisto.

“Acredito que tenha que se relativizar esta ideia de que o carnaval na origem era popular. Ele é uma festa, desde sua formação. Popular no sentido de sempre envolver todas as camadas da sociedade. A celebração instaura uma realidade que transcende as diferenças sociais. O característico do carnaval é suspender as regras da vida rotineira. Assim, as camadas mais pobres ‘valem’ tanto quanto as mais ricas, e é por isso que chama tanto a atenção. É como se a sociedade naquela hora se desreprimisse, criando um mundo meio utópico, meio fora da vida rotineira. Mas é claro que se relaciona com esta, pois começa e acaba”, define a docente e autora de Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile e O rito e o tempo: ensaios sobre o carnaval.
 
Segundo a professora, é comum acreditar que as escolas de samba possuem uma origem autêntica que, posteriormente, foi sendo alterada pela mídia, o que não é realidade. Ela explica que elas já nasceram em um ambiente complexo, heterogêneo e cheio de tensões. “Ao final dos anos 1920, começa a surgir uma forma nova de desfilar nas ruas, as escolas de samba. Ela é feita da interação das camadas populares, que até então tinham os blocos – nos morros e subúrbios –, que passam a interagir com o asfalto e com as classes médias urbanas. Essa interação dos sambistas, do pessoal que morava no centro da cidade, na pequena África, com as camadas médias urbanas como um todo, com o rádio e a indústria fonográfica. E as escolas são uma confluência disso tudo. A grande novidade delas é a rítmica, essa modalidade musical, essa força que tem a sua bateria”, relata.

Maria Laura acrescenta que os ranchos, atração popular que reunia uma camada branca e mulata de trabalhadores urbanos, foram seus precursores por possuírem uma música característica (a marcha-rancho), um enredo, o correpondente ao mestre-sala e à porta-bandeira e  fantasias de acordo com o enredo.
 
Transmissão televisiva

A tradição que começou há oito décadas funciona de forma orgânica e vai adquirindo características novas ao longo dos anos. A construção da Marquês de Sapucaí, por exemplo, foi uma delas. Com a proibição da decoração de rua no Sambódromo, as alegorias incorporaram a grandiosidade das decorações. As transmissões dos desfiles pela televisão – que tiveram início na década de 70 –, sambas-enredo com patrocínio, o grande interesse de celebridades e subcelebridades em participar da festa, entre outros, acabam por transformá-lo em um megaevento midiático. Cavalcanti, entretanto, alerta que o que se vê na televisão não é um retrato fiel do que acontece na Sapucaí. Ela assegura que a transmissão é fria e chata e que existem jogos de interesses envolvidos, havendo a exibição, deste modo, apenas do que pode convir.

“A mídia televisiva nunca conseguiu acompanhar direito os desfiles. Ela mostra ‘fulaninho de tal’ no alto, mas quem está lá vê  todos: o barrigudo, a idosa, o deficiente físico. O desfile em si mantém características muito integrais; a mídia, porém, o transforma, não transmitindo exatamente o que é aquilo. E nisso envolvem-se interesses diversos. Temos que distinguir o que a mídia cria a partir dos desfiles e o que este como processo social orgânico ainda é na vida da cidade”, comenta.
 
A transformação do desfile em palco de estrelas e pessoas com alto poder aquisitivo é refutado pela antropóloga. Segundo ela, a participação de moradores das comunidades de origem das agremiações nas alas é de suma importância para a evolução dos desfiles. Maria Laura diz que, na década de 90, os moradores tinham o costume de fazer poupanças a fim de angariar dinheiro para comprar a roupa carnavalesca, ou então trabalhavam na própria escola como uma forma de arcar com os seus custos. Atualmente, os moradores das comunidades participam sem qualquer gasto, sendo cobrada apenas a participação nos ensaios e  o conhecimento da letra do samba.

“Uma escola não consegue fazer um desfile grandioso apenas com artistas, turistas e quem compra fantasia. É claro que a pressão de ganhar dinheiro é estúpida e grandíssima. Elas, no entanto, não podem ir totalmente nesta direção, senão não acontece. Não dá para dispensar o amor e a paixão daqueles que são as pessoas da escola de samba. Então, eu relativizo muito. Eu procuro mostrar como esses espetáculos mantêm características culturais e como o próprio dinheiro que entra deve obedecer  a certas lógicas que são internas às escolas de samba. O próprio auxílio às vezes é usado para pagar dívidas e o carnaval começa de novo do zero”, analisa.
 
Aos que dizem que a festa tem perdido uma das suas principais características, que é a brincadeira e a diversão em detrimento do sem-número de regras que regem os desfiles – como tempo mínimo e máximo para a evolução e diversos outros quesitos julgados  –, a docente rebate dizendo que a dimensão competitiva também é parte da festa. A antropóloga acredita que tantas regras acabam, inclusive, impedindo que a tradição se esvaia. “A competição e esse universo de regras também estabelecem algumas balizas para as transformações. Há mudanças que parecem que vão pegar e, após alguns anos, caem. Não têm continuidade devido aos parâmetros da competição. A concorrência em si, às vezes, até ajuda a controlar os processos de transformação. Ela recoloca as questões”,  conclui.