Ponto de Vista

Direitos humanos que ainda incomodam

Rodrigo Baptista

Ilustra: Caio Monteiro

Publicado em dezembro de 2009, o III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) foi imediatamente alvo de críticas por parte de setores localizados, como as Forças Armadas, empresas de comunicação, representantes do agronegócio e a Igreja Católica. De caráter progressista, o texto contempla as mulheres, que passam a ter direito legal ao aborto; e os homossexuais, que poderão contrair matrimônio. Ambas as propostas foram duramente criticadas pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB).

Mas talvez a proposta que gerou maior grita por parte dos setores conservadores tenha sido a que cria a Comissão Nacional da Verdade. O documento sugere que a comissão terá poderes para “apurar e esclarecer violações de direitos humanos durante o regime militar”. Este ponto gerou uma crise interna no governo, entre o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria de Direitos Humanos, e o ministro da Defesa, Nelson Jobim.

O decreto que cria o programa foi apresentado como uma espécie de “carta de intenções do governo”, sem força de lei. Para tornar essas intenções legais o Executivo terá que encaminhar ao Congresso projetos de lei para as ações propostas, mas a questão se torna mais complexa ao levarmos em conta as eleições que ocorrerão no ano de 2010.

Para debater as propostas do PNDH3, o Olhar Virtual entrevistou Yves Lesbaupin, professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa Exclusão social e poder local. Lesbaupin aborda o atraso do Brasil em assimilar o fim da ditadura, a resistência dos setores conservadores ao programa e o foco dado pela grande mídia ao debate.

Olhar Virtual: O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos dividiu os ministros do governo Lula, em especial no que tange à criação da “Comissão Nacional da Verdade”. Segundo o texto, ela terá autorização para “apurar e esclarecer violações de direitos humanos durante o regime militar”, além de “requisitar documentos, auxiliar investigações judiciais” e divulgar relatório anual sobre suas atividades. Nelson Jobim (Defesa) e o comando das Forças Armadas criticaram a proposta, enquanto a Secretaria Especial dos Direitos Humanos a defendeu. Como compreender a reação dos ministros e do setor militar ao PNDH-3?

Yves Lesbaupin: A proposta desta Comissão da Verdade faz parte do Programa Nacional de Direitos Humanos-III, um programa amplamente debatido pela sociedade civil, nas conferências estaduais e nacional de direitos humanos. É, portanto, uma proposta que vem da sociedade e que foi assumida pelo governo. A reação dos ministros militares, com o apoio do ministro da Defesa, seria rapidamente superada se o governo Lula tivesse decidido bancar a proposta original. Afinal, os ministros são subordinados ao presidente; se não estão satisfeitos, devem se retirar. Não são os ministros que decidem, eles são escolhidos pelo presidente, dependem da confiança deste para permanecer no Ministério. Ao ceder à pressão dos ministros militares, o governo se demitiu de sua autoridade e concedeu-lhes um poder que eles não têm. O recuo nesta questão se deve à pusilanimidade do governo, na verdade coerente com a sua posição inicial de não enfrentar os militares, na questão da abertura dos documentos do período militar.

Olhar Virtual: O que representa a ameaça de demissão do ministro Jobim e dos comandantes do Exército e da Aeronáutica caso o termo “repressão política” não fosse retirado de alguns trechos do programa que cria a "Comissão da Verdade" para apurar torturas e desaparecimentos durante o regime militar?

Yves Lesbaupin: Na verdade, no Brasil, ainda não se assimilou o fim da ditadura militar (1964-1985). A ditadura caiu porque tinha perdido totalmente a legitimidade no seio da sociedade, o que ficou claramente demonstrado pelo movimento “Diretas Já”. As Forças Armadas estavam desmoralizadas devido a seu envolvimento direto com a ditadura e a repressão. O clima no país – e em toda a América Latina –, diferentemente dos anos 60 e 70, era contrário às ditaduras e favorável aos regimes democráticos.

As autoridades do regime militar conseguiram conduzir a transição de maneira a deixar o governo, mas sem perder a influência. Conseguiram barrar a eleição direta para presidente e também conseguiram que os candidatos à eleição indireta fossem moderados. O presidente que acabou assumindo em março de 1985, José Sarney, tinha sido o presidente do partido da situação (Arena/PDS) até poucos meses antes. O governo Sarney foi um governo tutelado. Os governos seguintes, a começar pelo primeiro presidente eleito pelo voto direto desde 1960, Collor de Mello, não tiveram interesse em enfrentar a questão.

O atual governo não teve coragem de enfrentar a questão. Embora tenha instituído no primeiro ano uma “Comissão dos Mortos e Desaparecidos”, nunca permitiu que se levantassem os documentos em posse das Forças Armadas. A ponto de o primeiro presidente dessa Comissão se demitir e ter denunciado publicamente o bloqueio estabelecido pelo governo. O atual secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, ex-preso político e torturado durante a ditadura, assumiu a causa dos familiares de desaparecidos, empenhou-se na formação de uma comissão para procurar os corpos dos guerrilheiros mortos e enterrados na região do Araguaia, conseguiu a publicação do livro Direito à Memória e à Verdade e apoiou a proposta da Comissão da Verdade sobre os crimes praticados durante a ditadura.

Olhar Virtual: Em outros países sul-americanos o processo de julgamento de responsáveis por crimes contra os direitos humanos durante o período ditatorial está mais avançado. Por que no Brasil o processo ocorre de forma mais morosa?

Yves Lesbaupin: No Brasil, não houve um processo público de investigação e debate; não houve qualquer apuração dos fatos – como ocorreu, por exemplo, na Argentina. Toda a análise crítica, toda a revisão do que aconteceu durante a ditadura militar foi feita no âmbito da sociedade civil, em inúmeras entrevistas, livros, filmes, documentários escritos/dirigidos por particulares, por setores da Igreja Católica e de outras igrejas e, eventualmente, no interior da universidade. O mais importante desses levantamentos é a obra Brasil Nunca Mais, feita praticamente na clandestinidade, para que seus autores não fossem vítimas de perseguição.

Olhar Virtual: Como analisar a reação dos veículos de comunicação, do setor do agronegócio, da Igreja Católica e de outras instituições a propostas como a legalização do aborto, casamento entre indivíduos do mesmo sexo, regulamentação da mídia e reforma agrária?

Yves Lesbaupin: É preciso observar que a grande mídia desencadeou uma campanha muito bem orquestrada contra o III PNDH, reunindo numa só frente os diferentes descontentamentos com temas bastante diversos do Programa: os militares, com a questão da Comissão da Verdade; os donos dos meios de comunicação, com a questão da regulamentação da mídia; a Igreja, com a questão do aborto; os latifundiários, com a questão da reintegração de posse. Desta forma, a mídia passou a ideia de que o Programa era um conjunto de erros, que precisava ser descartado ou, pelo menos, ter os seus “erros” corrigidos. O que a campanha revelou, sob o texto, é o que muitos autores há tempos defendem: nós não tivemos apenas uma ditadura militar, tratou-se na realidade de uma ditadura civil-militar, em que os militares tinham o poder executivo-coercitivo, mas cujo programa era o do grande empresariado, dos latifundiários e do setor financeiro. No momento em que os crimes da ditadura correm o risco de serem investigados, imediatamente se levantam não apenas os militares comprometidos com a ditadura, mas também os civis comprometidos.

Para conseguir seu intento, a campanha escondeu da opinião pública que esta era a terceira versão de um Programa cujas duas primeiras versões haviam sido feitas no governo Fernando Henrique. Escondeu também que boa parte do seu conteúdo já estava nos dois programas anteriores. Escondeu que ele resultava de uma ampla discussão nas conferências de direitos humanos. E passou a ideia de que o programa foi uma decisão unilateral do governo, sem debate com a sociedade.

Por trás da campanha, os setores interessados são facilmente identificáveis: os militares comprometidos com a ditadura, que não querem que a verdade sobre os crimes da ditadura venha à tona; os donos dos meios de comunicação, que querem continuar a ter plena liberdade de ação, sem controle por parte da sociedade, sem obrigações, sem normas, sem exigências. Para eles, os órgãos de comunicação lhes pertencem, não são concessões públicas. Liberdade de expressão para eles é a sua própria liberdade de divulgar ou de omitir o que eles querem, não a liberdade dos cidadãos de conhecerem e serem informados. Os meios de comunicação têm liberdade; os cidadãos, não. A maior prova disso foi a sua ausência na recente Conferência Nacional sobre Comunicação. Quando se tratou de debater amplamente com os diferentes setores da sociedade sobre a comunicação no Brasil, eles decidiram não participar. Porque se sentem acima da sociedade, acima da lei, acima da democracia. Os grandes proprietários de terra, o agronegócio, para manter a concentração da terra que está em suas mãos e a repressão sobre os movimentos sociais que lutam pelo direito à terra. E a Igreja, ou melhor, setores da Igreja católica, que não se conformam com a descriminalização do aborto.

Olhar Virtual: Como a abertura dos arquivos da ditadura pode contribuir para entender o Brasil do período ditatorial e do presente, e em que medida a investigação do passado é fundamental para a construção da cidadania?

Yves Lesbaupin: Ao fim da II Guerra Mundial, se fez um julgamento que se tornou famoso de todos aqueles que contribuíram para o genocídio nazista, o Julgamento de Nuremberg. No fim do regime do Apartheid na África do Sul, se instituiu uma Comissão da Verdade, para investigar os crimes de racismo que tinham ocorrido durante décadas naquele país. No fim da ditadura militar argentina, se estabeleceu uma investigação sobre os crimes ocorridos durante aquele período – torturas, assassinatos, estupros, desaparecimentos. Foram responsabilizados não apenas torturadores, executores de ordens, mas seus mandantes, generais, inclusive generais-presidentes. Ao fim da ditadura de Fujimori, se montou no Peru uma Comissão da Reconciliação e da Verdade, para apurar os casos de violência ocorridos naquele período.

No Brasil, até hoje, não se apurou o que aconteceu durante a ditadura civil-militar que durou 21 anos. Os militares comprometidos não querem que este passado seja revelado, que seja revisto, não querem sequer que ele seja criticado. As elites, que se beneficiaram com as políticas desenvolvidas na ditadura, também não querem. E os governos, que deveriam representar os interesses da maioria dos cidadãos e defender os direitos humanos, estão mais preocupados em manter e ampliar o seu poder. Eles representam, na verdade, os interesses das elites, o seu poder depende delas.

Olhar Virtual: A assinatura do decreto ocorreu em dezembro, ou seja, já no final de 2009. Como esse fato pode influenciar a pauta dos veículos de comunicação e dos candidatos à Presidência em ano eleitoral? E por que deixar para publicá-lo tão próximo do último ano do governo atual? 

Yves Lesbaupin:  A proximidade do decreto com o ano eleitoral é mera coincidência, já que o programa dependia da realização da Conferência Nacional de Direitos Humanos. Ele não poderia ser apresentado antes disso. Se o objetivo do governo fosse eleitoral, teria sido uma péssima escolha: a reação da mídia provou que, deste ponto de vista, o melhor seria o governo ter evitado assiná-lo (como já fez com tantos outros temas, como a mudança dos índices de produtividade da terra).