Ponto de Vista

O sambista do cotidiano

Aline Durães

Ilustração: Caio Monteiro

“Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/ Uma boa média que não seja requentada /Um pão bem quente com manteiga à beça/ Um guardanapo e um copo d'água bem gelada/ Feche a porta da direita com muito cuidado/ Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol/ Vá perguntar ao seu freguês do lado/ Qual foi o resultado do futebol.”

Esse trecho pertence à Conversa de botequim, uma das letras mais famosas de Noel Rosa, cantor e compositor nascido e criado em Vila Isabel, que entrou para a história da música popular brasileira pelo caráter inovador de suas canções. Em 2010, é comemorado o centenário do nascimento do sambista que, até hoje, tem seus sucessos interpretados por grandes nomes da música nacional.

Noel, o poeta da Vila, nasceu em 11 de dezembro de 1910. Durante o parto, os médicos precisaram extraí-lo à força, utilizando um fórceps e causando a fratura em seu queixo, característica que o marcaria pelo resto da vida. O compositor começou cedo no samba: desde criança, tocava bandolim e violão. Aos 18 anos, já integrava o Bando de Tangarás, grupo do qual participava também Braguinha, parceiro de Noel em um sem-número de músicas. Em 1929, lança Com que roupa?, um dos maiores sucessos de sua carreira.

Alegre, boêmio e intenso, Noel morreu aos 26 anos, vitimado pela tuberculose. A vida curta não impediu a produção intensa. Abordando temas do cotidiano carioca através de letras musicais impecáveis, ele se eternizou como um dos mais brilhantes sambistas brasileiros. Em entrevista ao Olhar Virtual, Regina Meireles, professora da Escola de Música (EM) da UFRJ, conta um pouco sobre a vida e a obra do “sambista-filósofo”.

Olhar Virtual: Noel Rosa foi um compositor de Carnaval? 

Regina Meireles: Não, não. Pelo contrário. O Noel tem composições que foram lançadas para o Carnaval, inclusive o primeiro sucesso dele, Com que roupa?, foi hino do Carnaval de 1931. Mas Noel também compôs sambas que não estavam ligados à festa. Músicas que eram chamadas de “sambas de meio de ano”.

Olhar Virtual: Como Noel marcou a música brasileira? 

Regina Meireles: Até Noel, o samba estava muito relacionado a questões africanistas. A forma e o modelo ainda eram presos às tradições africanas. Predominava o samba de roda, o samba com refrão, o samba com partido alto. Noel não vai por esse caminho. Por ser um rapaz de classe média de Vila Isabel, ele tinha outra tradição musical, que não passava apenas pelo samba. Ao mesmo tempo, na década de 1920, o samba fica mais cadenciado, pois foi introduzida uma nova marcação de samba.

O samba do Noel era peculiar, porque ele era um ótimo letrista, contava momentos do cotidiano. A figura da mulher em Noel, por exemplo, não é idealizada como na época dos seresteiros. Não era divina e majestosa. Era a mulata que briga, que vive no barracão. O samba de Noel era uma conversa. Você não pode trocar as estrofes de ordem, porque elas formam uma história.

Olhar Virtual: Noel tinha um defeito físico no queixo, causado no momento de seu nascimento. A literatura diz que ele, por vezes, tinha vergonha disso. Esse traço resvala em sua obra como compositor?

Regina Meireles: Não. Ele travou uma disputa poética com Wilson Batista, sambista que começou a fazer música contestando a validade do samba de Noel. Em determinado momento, Wilson escreve uma música – Frankenstein da Vila – falando do defeito físico de Noel, o que foi uma barbaridade, já que, até então, a disputa apenas discutia a música. Noel não responde.

Sabemos que ele tinha dificuldades em ingerir alimentos sólidos e que não gostava de comer na frente das pessoas. Analisando friamente, acho que ele superou essa questão, até porque muitas mulheres foram apaixonadas por ele; as pessoas gostavam de Noel, porque ele representava o que o carioca tinha de mais autêntico: a capacidade de fazer piada de tudo.

Olhar Virtual: Em quem a senhora reconhece um legado de Noel na música atual?

Regina Meireles: Como tudo na vida, o samba passa por transformações. Noel começa a falar das lutas do cotidiano e mostra as dificuldades pelas quais o Brasil passava. Ele é um produto de seu tempo. E pode ser considerado inovador, porque traz um aspecto coloquial para o samba, o que ainda não tinha sido mostrado. Depois dele, aparece Moreira da Silva, que também conta histórias da vida no morro. Ele dá seguimento à obra iniciada por Noel. Mas, depois, o samba muda de feição. Surgem novos gêneros. Apesar disso, a própria Bossa Nova chega a retomar o tom intimista do samba de Noel.

Olhar Virtual: Em 1929, Noel integra um conjunto vocal conhecido como Bando de Tangarás. Pouco tempo depois, ele abandona o grupo e segue em carreira solo. Existem diferenças substanciais entre o Noel desses dois momentos?

Regina Meireles: Claro. O Bando de Tangarás era formado por jovens de classe média e de classe média-alta. Moravam na Tijuca, em casas. O grupo era liderado por um rapaz conhecido como Almirante. Ele não aceitava dinheiro para tocar. E fazia isso para mostrar que eles não tinham a mesma condição dos músicos da época e não precisavam de remuneração. Os integrantes do Bando, que se apresentavam vestidos como personagens de festa, tiveram um certo imbróglio com relação a Noel, porque, quando este fez Com que roupa?, ele esperava que a música fosse para o disco do grupo, mas o Almirante não colocou. Noel não rompe drasticamente com o Bando. Braguinha, por exemplo, continua sendo seu parceiro. De alguma forma, era outro tipo de música. De repente, Noel começou a fazer um samba que não tinha nada a ver com essa história.

Olhar Virtual: Jornais da época chamavam Noel de “o sambista-filósofo”. Além de narrar o dia a dia, suas canções também refletiam sobre ele?

Regina Meireles: Eu acho que ele tinha a tendência de se preocupar com questões filosóficas. No samba Filosofia, ele diz: “Vou fingindo que sou rico
pra ninguém zombar de mim”. Ele quer se passar por rico para as pessoas não caçoarem dele. Começa a ter tiradas que mostravam a crueldade da sociedade, que não tratava bem quem não tinha posses. Acho também que uma pessoa que sabe que vai morrer começa a pensar em termos mais filosóficos sobre a vida. Quando alguém pergunta para ele porque  não estava se tratando contra a tuberculose, ele diz: “Prefiro viver intensamente a viver extensamente”. Nesse momento, ele provavelmente já tinha pensado sobre isso e optou pela qualidade de vida.