Olho no Olho

O Diabo no Medievo e o Pensamento de hoje

 

Gisele Motta

 

O Programa de Estudos Medievais (PEM) do Instituto de História (IH) da UFRJ, o Grupo de Pesquisas em Apocalíptica Judaica e Cristã da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e o Instituto Teológico Franciscano promoveram, na última semana (nos dias 25, 26 e 27 de maio), o encontro “O imaginário medieval sobre o Além: reflexões interdisciplinares e comparativas”.

Os debates do encontro variaram de santos a demônios, de mitos à realidade cortante da época.  O Olhar Virtual selecionou, para que entendêssemos melhor os pensamentos da Idade Média, duas apresentações. A primeira foi “Um vilão para qualquer palco: um ensaio sobre as características do Diabo e os locais de sua manifestação em hagiografias mariológicas do século XIII”, ministrada por Thalles Braga Rezende Lins da Silva, mestrando do PEM – UFRJ.

A segunda palestra escolhida foi “O‘eu”, a ‘alma’ e ‘Deus’ – Descartes e a manutenção do paradigma disjuntivo na saída do Medievo”, ministrada pelo professor  Osvaldo Luiz Ribeiro, da Faculdade Unida de Vitória.

Thalles Braga Rezende Lins da Silva

Mestrando do PEM – UFRJ

“O diabo, no imaginário medieval, era, na verdade, uma metáfora para o mal. O diabo representa as formas de ‘não proceder’. Ele representa tudo que é negativo para a sociedade, aparecendo em confronto com as figuras que representam o bem, como Maria.
A construção da figura do diabo relaciona-se mais com a tradição interpretativa eclesiástica do que com o que de fato está escrito nos textos canônicos. Por exemplo, não há nenhuma passagem bíblica que afirme que Lúcifer é o nome do Diabo. Lúcifer (estrela-da-manhã) era o nome dado pelos romanos ao planeta Vênus, durante a época do ano em que este aparecia no céu antes do nascer do sol. Por meio de encadeamentos interpretativos relacionam-se às passagens de Isaías, sobre a derrocada do Príncipe da Babilônia, com a do Apocalipse, sobre a queda do dragão que arrastou um terço das estrelas do céu, com a crença de Satã ter sido o primeiro, o mais iluminado entre os anjos. Somente somando-se isso tudo se chega ao nome Lúcifer.

As interpretações variam segundo o momento histórico e a sociedade. Satã indicava, no antigo testamento, uma figura que vagava pelo mundo como carrasco ou acusador. Ele tinha somente uma função ingrata, dada por Deus. Com o passar do tempo, foi tirada da ideia de Deus tudo que era negativo, o ruim. Sendo assim, tinham-se duas ‘opções: ou os sofrimentos humanos eram a justiça sendo feita pelos seus comportamentos errôneos ou então criava-se um bode-expiatório do mal, o diabo.

Estudei os textos ‘Milagres de Nuertra Señora’, do sacerdote poeta Gonzalo de Berceo, e ‘Liber Mariae’, do teólogo franciscano Gil de Zamora. Neles há a identificação do mal com o diabo, porém suas características variam. Em Berceo, ele atua sobre quem já pecou. Sendo que quando a ação ocorre no céu ele é mais humilde, defendendo eloquentemente as leis e as normas, mas se portando como um subordinado. Na Terra usa de polimorfismo – aderindo a diferentes formas dependendo da situação. Também é humilhado comicamente, tanto na terra como no céu. Já no inferno, é tido como governante, senhor feudal, rei, tendo sempre uma legião de servos

Em ‘Liber Mariae’, o diabo leva as pessoas a pecar, e essa influência é tão forte que quase isenta o pecador de culpa. No céu, há a menção das ordens de demônios que levam as pessoas para o inferno. Porém, se for haver uma discussão há um demônio diferenciado, e ele não é tão eloquente, mas igualmente humilde, argumentando sobre as leis. Na terra não possui corpo físico, inclusive se esvaindo em fumaça. No inferno é igualmente tido como senhor, porém seu maior título é ‘príncipe’.

As características são relacionadas diretamente aos lugares e ao meio social dos autores. Por exemplo, Berceo era um eclesiástico, com estima pela vida monástica, cuja adesão às regras de vida era feita por livre-arbítrio. Então, para ele, o diabo não vai influenciar uma pessoa a ponto de lhe tirar a culpa. Já Zamora, professor de Teologia, que escrevia para seus alunos, produzindo um material para uso na pregação, não podendo assim se utilizar da sátira, como fazia Berceo. Além disso, ele tinha relacões com nobres e a familia real, e por isso nunca utilizava o termo ‘rei’ para o diabo. Esse termo estaria reservado para Deus, não podendo ser aplicado ao diabo.”


Osvaldo Luiz Ribeiro

Professor da Faculdade Unida de Vitória

“Apesar das transformações culturais, muito do mundo medieval está presente no mundo contemporâneo. Ainda em pleno século XVII, pressupõe-se a ruptura entre o pensamento e a matéria. Na Idade Média, via-se o pensamento humano como atributo da alma ‘racional’, logo, criatura de Deus e totalmente independente da matéria. No século XIX, Darwin propõe a vida humana como fenêmeno interno à natureza, o que pressupõe, ainda embrionariamente, um vínculo necessário entre pensamento e natureza.

O vínculo entre pensamento e natureza será expressamente declarado por Nietzsche, que, em A Gaia Ciência, diz que ‘a consciência é o último estágio da evolução orgânica’. Todavia, a despeito de Darwin e Nietzsche, a disjunção entre matéria e pensamento permanece. Particularmente nos campos das Ciências Humanas, ditas ‘moles’, onde o homem é pensado de forma isolada da natureza. Nas Ciências Naturais, ditas ‘duras’, testemunha-se um esforço para se abandonar o pressuposto do ‘olhar divino’, decorrente da epistemologia moderna, herdeira da medieval, de um pensamento marcado pela perspectiva do ‘olhar divino’. Quanto a nós, não refletimos suficientemente sobre o pensamento como fenômeno físico, parecemos não enxergar que o pensamento é parte do mundo natural, sendo, então, também orgânico.

Essa forma de não ver o pensamento como metafísico é algo que estava presente na cultura medieval, e que deveria começar a ser desconstruído. Naqueles termos, ‘o verdadeiro conhecimento’ é de Deus, da alma. Como não há no discurso universitário a ideia de um Deus que revele, tampouco o conceito operacional de ‘alma pensante’, na prática, acaba-se assumindo que, se não há nem Deus nem alma, segue-se que não há conhecimento verdadeiro”.

Sempre nos termos daquele raciocínio preso à plataforma epistemológica medieval, o conhecimento só é verdadeiro se divino e absoluto. Então, entramos num paradigma ‘conhecimento absoluto ou divino’ versus ‘o não conhecimento’. Deveríamos pensar, ao contrário, que o conhecimento não é menor (nem é não conhecimento) por não ser absoluto/divino, porque só seria assim se comparado com um conhecimento divino.       

A atualidade não vê, assim, a relação que há entre o pensamento e o homem como corpo. Criamos uma dicotomia entre homem e natureza. Nós não levamos suficientemente a sério até hoje que a vida é física e que o pensamento brota da matéria.”