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Edição 205      27 de maio de 2008


Olho no Olho

Anorexia: além do duelo com o espelho


Fernanda Fernandez, Marcello Henrique Corrêa e Seiji Nomura

imagem olho no olho

A anorexia nervosa é uma patologia caracterizada por uma violenta falta de apetite associada a uma imagem distorcida de si mesmo, que leva o enfermo a sempre acreditar que está muito acima do peso considerado ideal. Em geral, atribui-se grande parte das causas da doença à mídia e à sociedade por estabelecerem padrões irreais de beleza, além da deficiência de auto-estima do doente.

Dois especialistas da UFRJ, procurados pelo Olhar Virtual, nos ajudam a compreender a disfunção alimentar, apresentam aspectos novos, possibilitadores de novas formas de tratamento

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Nelson Caldas
psiquiatra do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do HUCFF

Nenhum fator específico leva alguém a desenvolver anorexia, embora ela seja mais comum em mulheres. Uma conjunção de problemas psicológicos, como baixa auto-estima, preocupação excessiva com o peso e a forma do corpo, insatisfação com algum aspecto da vida, nosso contexto social em que beleza e o corpo magro são mais valorizados que o saudável, o ambiente familiar pessoal podem ser responsáveis, mas não há uma característica que determine a anorexia por si só.

Vivemos numa cultura em que a questão do corpo é determinante.  Hoje em dia, por exemplo, em algumas lojas não há manequim para meninas com cintura um pouco maior. Há uma grande pressão sobre as meninas para se adequarem ao corpo considerado padrão — cintura fina, pouco busto, perna fina, ossos visíveis.

A genética pode dificultar a adequação ao padrão, que, em conjunção com estruturas psicológicas pouco firmes, pode levar as pessoas a esforços absurdos nessa busca, usando de métodos violentos para o corpo. A condição básica para o desenvolvimento da anorexia é que a pessoa tenha de antemão uma auto-estima baixa, que privilegia o externo em detrimento do interno. Ela se olha no espelho, mas não se vê.

É preciso mostrar a que violências são submetidas para se manter num corpo que não é natural. Só através da inanição é possível se manter nesse padrão.

A adolescente está no grupo de risco. Os profissionais da saúde, professores e pais precisam de certos cuidados ao criticar o peso delas, mesmo que sofram de obesidade ou outro distúrbio. Esses traumas podem atrapalhar no desenvolvimento da pessoa. 

Um dos aspectos do problema é a alteração da percepção da imagem corporal, ilustrado pela imagem de uma pessoa magérrima que se olha no espelho e vê alguém gordo. A anoréxica se vê pela ausência – quanto menos corpo tem, mais se vê acima do peso. Ela vai tentar sempre emagrecer nem que para isso tenha atitudes drásticas de saúde. É uma das situações de saúde psiquiátrica onde mais se morre.
 
O paciente sempre enxerga em si algum defeito, seja na pele, no cabelo, nariz, em qualquer lugar. E se atribui a um consumo mínimo de qualquer alimento a razão dos defeitos que vê em si, o que leva a um zelo excessivo em relação à nutrição. Em alguns casos, podem até acreditar que o cheiro da comida pode engordar.

A pessoa vai caminhando progressivamente para a desnutrição, podendo levar a repercussões fatais. Além disso, há risco de alterações cardíacas, cerebrais, na estrutura óssea, anemia profunda, entre outros problemas. Os anoréxicos apresentam alterações globais em diversos nutrientes.

Quanto mais cedo se detectar a alteração, mais fácil é intervir. Os pediatras ou clínicos de adolescentes, ao detectar perdas de peso acentuadas ou progressivas, alterações na pele, preocupação excessiva com a estética, anemia, queixas de fraqueza e cansaço devem atentar para essa possibilidade.  Também devemos estar alertas para o uso de medicamentos como laxantes diuréticos, anfetaminas (que inibem o apetite).

Não há um consenso quanto ao tratamento. Em termos da literatura médica, é a terapia cognitiva com o uso de medicamentos e a psicoterapia interpessoal combinados com a atuação da família. Assim, se ajuda a pessoa a desfazer certos processos cognitivos associados a uma imagem negativa do seu corpo. Os fármacos podem ajudar a controlar o apetite, alimentar-se do que faz bem. No tratamento, certos mitos em relação ao corpo e à alimentação devem ser desfeitos, pois atrapalham no quadro da doença.

Os medicamentos ajudam a diminuir a ansiedade, depressão, principalmente em relação à ingestão alimentar. É preciso a família estar integrada para enfrentar o problema. Muitas vezes alguns membros são muito severos e isso pode piorar o quadro da doença.

Se o comportamento alimentar altera a qualidade de vida, deixa de ser um cuidado e passa a ser um perigo, pode afetar a convivência social, o desempenho acadêmico, pode causar complicações como cansaço fácil, alteração no sono e ausência de menstruação.

Marta Rezende Cardoso, professora do Instituto de Psicologia
e Fabiana Lustosa Gaspar, mestre em Teoria Psicanalítica

Observa-se na anorexia uma evidência notória da corporeidade em detrimento da interioridade na qual a expressão do sofrimento teria subjacente a experiência de um conflito psíquico. O corpo assume aqui lugar privilegiado de expressão do mal-estar subjetivo, em vista da precariedade dos mecanismos psíquicos para elaborá-lo. Diante da falha nos processos psíquicos de simbolização, o corpo é utilizado como recurso possível – como “último recurso” – de expressão da dor e do sofrimento.

A ilusão de um corpo inatingível, bem como o autocontrole e a hiperatividade, característicos na anorexia, nos fazem refletir sobre a dimensão de onipotência narcísica. O modo de funcionamento desta patologia parece eternizar a regência de um ideal marcado pela onipotência, tendo em vista a negação que aí se opera da aceitação dos limites corporais. Este vivido se encontra paradoxalmente intricado com a ação de impulsos destrutivos, uma vez que desafia as necessidades corporais de autoconservação e, no limite, a própria morte. O sujeito anoréxico se mantém em estado de extrema impotência psíquica, condenado, portanto, ao contínuo fluxo do pulsional; em última instância, ao trauma mortífero.

A eclosão do maior número de casos de anorexia ocorre no momento de entrada na adolescência, quando se dá a repetição da vivência dos conflitos infantis e a árdua e sofrida tentativa de elaborá-los. Além de incidir principalmente na adolescência, vale lembrar que as adolescentes do sexo feminino constituem o maior número de casos desta patologia, correspondendo a 90% deles.

Na patologia anoréxica, pressupomos a existência de dificuldades singulares no vivido infantil, sendo que a sua revivência na adolescência se mostra especialmente problemática. Se o acesso à genitalização autoriza a entrada no processo da adolescência, a recusa ou evitação do investimento no genital indica inesperada dificuldade de elaboração deste momento pubertário. Este tropeço no acesso à genitalização se desvela de forma mais evidente num dos aspectos marcantes da anorexia: a fixação e a regressão à oralidade através da conduta atuada de recusa do alimento. Esta tendência regressiva indica a impossibilidade de elaboração de determinadas fantasias e conflitos infantis.

Muitos autores têm sinalizado que no núcleo da anorexia haveria uma espécie de “congelamento” na relação primária, cuja característica primordial seria a indiscriminação e, então, a dificuldade de “encontro”, de reconhecimento da alteridade do outro. Consideramos, porém, que tanto a relação primária quanto o referencial edipiano se acham em profunda e íntima articulação, influenciando-se mutuamente, numa relação de sobredeterminação. A questão edípica é de fundamental importância na análise da patologia anoréxica, tal como ocorre na neurose. Embora a anorexia difira da neurose no que tange às dinâmicas e aos funcionamentos psíquicos, o valor do complexo de Édipo na organização do mundo interno do sujeito se encontra conferido a ambas.

Ao reviver a situação edípica de forma ameaçadora na adolescência, a anoréxica regride à oralidade por meio da atuação, como forma de afastamento do “encontro” com a genitalização. Este encontro significaria para ela, no plano da fantasia inconsciente, a ameaça de uma realização da cena incestuosa já que esta não pôde ser adequadamente recalcada. Porém, mesmo re-fixada, re-enviada à oralidade, a anoréxica, marcada por uma fragilidade de seus limites egóicos, necessitará, assim mesmo, de “fechar a boca” para estabelecer um limite “concreto” (na relação eu-outro) e assim impedir a invasão do “pai libidinal” e “sedutor”, fonte, no mundo interno, de um afluxo de excitações sem perspectiva de ligação ou de recalcamento.

Na problemática da anorexia, que comporta extrema dificuldade de reconhecimento dos limites entre o eu e o outro, pode-se pressupor, a partir deste ponto de vista, que as fronteiras egóicas seriam mais tênues. Isto ocorreria em função de estas não terem sido adequadamente investidas e sustentadas na relação primária. O aspecto excessivo e traumático se encontra presente, então, em ambas as figuras, paterna e materna. Isto faz com que a anoréxica se perceba num estado de intenso desamparo, uma vez que lhe faltam referências internas sólidas em que possa se ancorar para realizar o trabalho de elaboração psíquica ao longo de seu processo de subjetivação.

Os entraves próprios às vivências mais primitivas atuam também como uma espécie de empuxo, no sentido de uma compulsão à repetição deste modo de relação. Este aspecto sinaliza a existência de importante barreira no processo de diferenciação em relação ao outro, uma porosidade dos limites egóicos, entravando a realização de um trabalho mais eficaz de ligação da força pulsional. Apelando ao corpo, a anoréxica nos desvela um processo de desfusão pulsional, no qual a dimensão destrutiva e mortífera intensa e incessantemente se figura e presentifica.*

*Extrato do artigo: “Quando o psiquismo convoca o corpo: a resposta anoréxica”, publicado no livro: Psicanalisar hoje, organizado por Angélica Bastos, editora Contra Capa, em 2006.

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