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Edição 226      24 de outubro de 2008


Ponto de Vista

Abismo entre raças

Rodrigo Lois – AgN/Praia Vermelha

imagem ponto de vistaMesmo 120 anos após o fim da escravidão, o abismo sócio-econômico entre raças no Brasil ainda persiste. A desigualdade racial é gritante, seja na educação, na economia, no acesso à tecnologia ou na política. Uma prova disso é a distinção do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), estatística criada pela ONU, entre brancos e negros brasileiros. O IDH do branco (0,838) é equiparável ao de um país de alto desenvolvimento, enquanto que o da população negra ou parda (0,753) é semelhante ao de países como o Irã e o Paraguai.

A principal causa da desigualdade racial foi a ausência de políticas públicas, ao longo de toda a História do país, que visassem estabelecer a igualdade entre brasileiros de etnias diferentes. A sociedade brasileira, ao longo de todo o século XX, relegou a segundo plano essas questões. As gerações passadas ou ignoravam o problema ou acreditavam que as diferenças das condições de vida entre brancos e negros seriam resolvidas naturalmente com o desenvolvimento da nossa economia.

Um grupo que estuda essa desigualdade é o Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER), do Instituto de Economia (IE) da UFRJ. O LAESER se constitui em um espaço de articulação e reflexão sobre o tema das relações raciais. No último dia 15 de outubro, o laboratório divulgou o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil (2007-2008), que apontou uma mudança: a superioridade da renda mensal média entre brancos sobre a de negros ou pardos diminuiu.

Para comentar tal fato, assim como outros dados do relatório, e pensar políticas públicas que atuem no sentido de reduzir a diferença racial, o Olhar Virtual entrevistou o professor Marcelo Paixão, diretor de Graduação do IE e coordenador do laboratório.

Olhar Virtual: Como foi construído o relatório, em que ele se baseia?

O Relatório está formatado em oito capítulos temáticos, sendo que seis se debruçam especificamente sobre determinados tipos de indicadores sociais: demografia, mortalidade, educação, trabalho, condições materiais dos domicílios, acesso ao poder político e marcos legais. O Relatório usou dados de pesquisas oficiais, especialmente a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE. Mas também foram utilizadas outras fontes como as geradas pelos Ministérios da Educação e da Saúde, além de algumas pesquisas de levantamento de informações produzidas pela nossa equipe de trabalho, como o caso das titulações das terras quilombolas e o orçamento da União para políticas de equidade racial.

Olhar Virtual: Qual a principal conclusão do documento?

Em seu sentido geral, ocorreu uma redução das assimetrias de cor ou raça no Brasil desde o ano de 1995. Isso está presente nos indicadores do mercado de trabalho (especialmente do rendimento médio do trabalho), educacional, de incidência da pobreza, o IDH e o acesso a bens públicos como a água e esgoto. Porém, as assimetrias sempre foram muito grandes, fazendo com que mesmo as reduções recentes não tenham gerado um quadro mais eqüitativo. Por outro lado, em outros tantos indicadores não foi observado um movimento de redução de desigualdades de cor ou raça tal como é o caso dos índices de homicídios, a evolução do desemprego feminino e o acesso ao poder político.

Olhar Virtual: Segundo o estudo, a diferença entre o rendimento mensal médio do branco em relação ao do negro, por mais desigual que ainda seja, diminuiu. Porque essa superioridade de renda decresceu?

Nossa hipótese é que a evolução do salário mínimo recente, que cresceu em termos reais entre 1995 e 2006 cerca de 60%, contribuiu para a redução das desigualdades de remuneração no mercado de trabalho. Isso porque a população negra está mais fortemente concentrada no setor informal (cerca de 65% dos ocupados), que é muito influenciada pelo valor nominal do mínimo, ou em ocupações no setor formal que tendem a receber remuneração próxima ao piso salarial nacional. Além disso, o programa “Bolsa-Família” também ajudou na redução das assimetrias de rendimentos entre os brancos e negros, mais especificamente no que tange ao rendimento médio domiciliar per capita.

Olhar Virtual: Qual a importância desse tipo de pesquisa para a sociedade e para a formulação de políticas públicas contra a desigualdade racial?

Diversos estudos já mostraram que as assimetrias raciais brasileiras não cessariam, a não ser que o nosso modelo de relações inter-étnicas e raciais fosse debatido publicamente. A adoção de políticas ativas em prol da equidade racial não deve ser tomada como sinônimo de uma política puramente focalizada ou uma perspectiva de Estado mínimo. Pelo contrário, no Relatório, fica evidente que a maioria da população negra depende, e muito, dos serviços públicos. A perspectiva que defendo é de uma combinação de políticas voltadas a todos os cidadãos com outras destinadas à redução das distâncias relativas que separam as condições de vida dos negros dos demais grupos de cor ou raça.

Olhar Virtual: Como sabemos, desde a Lei Áurea, não foi criado nenhum tipo de intervenção estatal efetiva que contemplasse os afro-descendentes brasileiros. Como o senhor avalia a atenção por parte dos formuladores das políticas de geração de emprego e renda para com os negros? Qual o peso da falta de oportunidades em cargos mais altos para a auto-estima da população negra?

O Brasil encontra-se, hoje, diante do desafio de promover uma profunda revisão do papel social destinado aos descendentes dos antigos escravizados em nosso país. O fato de uma questão tão candente nunca ter sido alvo de preocupação por parte do Estado, dos formuladores de políticas públicas e da academia, paradoxalmente, revela o seu caráter primordial. Quanto ao fato de vermos poucos negros em funções de comando político, econômico e cultural tão somente denota a força do racismo à brasileira, que consegue forjar relações étnico-raciais aparentemente pacíficas desde que cada um saiba de antemão qual é o seu lugar. Assim, está colocada a necessidade de forjarmos relações inter-étnicas e raciais pacíficas e harmoniosas dentro de um quadro de igualdade de direitos e acesso às oportunidades.

Olhar Virtual: Que medidas de curto prazo poderiam ser adotadas pelo governo para acelerar o fim da desigualdade entre brancos e negros?

Diversas medidas podem ser adotadas dentro de uma combinação de políticas universais e destinadas à promoção da equidade racial. Talvez um bom caminho seja começar por um tema que nos é caro: a educação. A escola pública no Brasil precisa ser refundada, valorizando-se o salário dos professores, as condições de sala de aula e das instalações em geral, dando bolsas de estudos aos alunos dos ensinos Fundamental e Médio e aproximando-os das Universidades. Ademais, mudaríamos os currículos e práticas pedagógicas capacitando o professorado para um ensino que valorizasse a diversidade, o multiculturalismo e a igualdade entre os diferentes. Conviver com o diferente em termos sociais, cor, gênero, condições físicas, religião, é um modo de nos reconhecermos mutuamente como membros de uma mesma totalidade social.

Olhar Virtual: O sistema de cotas pode ser considerado como uma política pública que atua no sentido de diminuir a desigualdade racial? Possibilitar a vaga é suficiente? Não deveria existir um apoio do governo durante todo o período universitário do indivíduo e principalmente na Educação Básica?

Sou a favor do sistema de cotas para negros, portadores de necessidades especiais, indígenas e para qualquer outro contingente identificado com estruturais dificuldades de uma plena inserção no interior de nossa sociedade. As cotas podem ajudar no aprofundamento da diversidade (social, de cor, condições físicas) do corpo discente nas melhores universidades e, por conseguinte, no futuro, nas ocupações melhor remuneradas, prestigiadas e com acesso ao poder político. Na medida em que os jovens que forem beneficiadas por tais mecanismos sejam provenientes de famílias e áreas de menor poder aquisitivo, isso poderá gerar um efeito sistêmico difuso no prazo mais ampliado.

Também não prejudica a análise se dissermos que as cotas e ações afirmativas, na medida do possível para cumprir aquilo a que se propõem, guardam uma dimensão simbólica importante, mostrando a todos que qualquer ocupação é passível de ser exercida por qualquer pessoa, independentemente de origem social ou cor da pele.

Olhar Virtual: O estudo apresenta projeções positivas para a questão da desigualdade racial no Brasil? Há perspectivas de redução dessa desigualdade nos próximos anos, com base nos dados apresentados pela pesquisa?

O tema das relações raciais está imerso no interior da sociedade brasileira no seu conjunto. O futuro das assimetrias raciais depende da disposição do aprofundamento das, ainda tímidas, políticas que vieram sendo adotadas de promoção da equidade racial, como das políticas em prol da distribuição de renda tal como vieram sendo adotadas recentemente como foi o caso do salário mínimo, das políticas de combate à pobreza e a melhoria da qualidade de acesso ao mercado de trabalho. A crise econômica que se apresenta nos dias atuais não nos permite um maior otimismo quanto ao aprofundamento daquelas medidas mais progressistas. Por outro lado, estamos dentro de um sistema democrático, por isso não se deve subestimar a força dos movimentos sociais (e do movimento negro) no sentido da produção de alternativas de superação deste cenário complicado que se avizinha.

 

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