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Edição 235      6 de janeiro de 2009


Ponto de Vista

Intelectuais em transformação

 

Aline Durães

imagem ponto de vista

O ano de 1968 foi emblemático de muitas lutas que obtinham como mote principal o desejo de liberalização de costumes e o de combater o autoritarismo na Política. Essas mobilizações, engendradas por estudantes, universitários, professores e outros membros da sociedade civil, foram, não raro, norteadas pelos intelectuais da época. O filósofo existencialista francês, Jean-Paul Sartre, por exemplo, foi um ativista importante para as manifestações que se eternizaram como o “Maio de 68”. No Brasil, vários intelectuais de esquerda se destacaram nesse período, entre eles Darcy Ribeiro e Celso Furtado.

Hoje, no entanto, não faltam críticas ao papel social dos intelectuais. Muitos acusam esse grupo de ter sido cooptado pela ordem e de ter perdido sua função de efetivamente pensar a realidade, propondo mudanças. Outros enfatizam que a sociedade contemporânea produziu intelectuais institucionalizados, mais próximos de universidades e da produção de conhecimento acadêmico.

Para debater a questão, o Olhar Virtual conversou com Bernardo Sorj, professor de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. Na entrevista, Sorj comenta as funções tradicionais e atuais do intelectual e alerta que evitar o anacronismo é essencial para uma análise competente sobre esse ator social. Confira.

Olhar Virtual: Como era a relação dos intelectuais com os movimentos libertários de 1968? Qual foi a importância desses atores sociais para as contestações verificadas naquele ano?
No Brasil, os intelectuais de 1968 eram artistas, cientistas sociais, escritores, pessoas de Cinema e de Teatro e atuavam numa sociedade onde a classe média tinha um papel muito importante. A sociedade era fechada, por conta da ditadura, mas os intelectuais detinham espaços próprios para se expressar. A universidade, os jornais, a música, o teatro dava a esse setor uma capacidade de verbalizar seus anseios e de se expressar com certa liberdade. Esse setor era o que mais se sentia atingido pelo regime militar. Claro que a classe operária também era reprimida, mas, no geral, nenhum grupo era tão abalado quanto o setor dos criadores de idéias, que se sentia particularmente cerceado. Esse grupo foi então central em 1968, mas também se pode dizer que ele foi o problema de 1968, porque os movimentos que aconteceram ali expressaram basicamente a demanda e os anseios dos grupos intelectuais.

O ano de 1968 expressa fundamentalmente a radicalização desses grupos sociais, tanto em função da ditadura, que reduzia a capacidade de eles se expressarem livremente quanto em função de uma radicalização da proposta socialista revolucionária, que novamente atingia principalmente os setores intelectuais.

Olhar Virtual: O senhor acha que esses intelectuais eram mais atuantes do que os atuais?

Essa pergunta é anacrônica, porque a sociedade atual não é a mesma do final dos anos 60. Em 68, havia em torno de 400 mil estudantes universitários, hoje são seis milhões. Tem sentido comparar uma sociedade na qual a televisão ainda estava restrita a uma outra onde a TV existe em 97% dos lares? Comparar um mundo sem internet e um com internet? Temos que ter cuidado com as perguntas que envolvem “mais” e “menos”. É claro que os intelectuais mudaram. Não estou negando isso. Eu diria que não seria justo dizer que são eles mais ou menos atuantes, porque o intelectual de ontem não é o de hoje. A sociedade mudou. E conseqüentemente, mudaram também os seus intelectuais.

Olhar Virtual: Essa sua afirmação lembra o filósofo Norberto Bobbio que pontuava que cada sociedade tem os intelectuais que lhe convém.

Essa é uma frase de impacto, mas eu diria que a sociedade produz seus intelectuais. O intelectual não cria realidades sociais. Ele racionaliza e justifica um sentimento que já está na sociedade. Ele capta tendências na sociedade e a realimenta com seu discurso. A partir do momento em que a sociedade não evoca mais transformações sociais, o intelectual não vai imaginar o que não está sendo colocado pela sociedade. Uma sociedade que não está pedindo, que não está expressando uma vontade de mudança profunda, não vai produzir intelectuais que queiram transformações profundas. Eles até existem, mas não são significativos porque a sociedade não os procura.

Olhar Virtual: Que tipo de intelectual então a sociedade brasileira contemporânea produziu?

A sociedade mudou, os meios de comunicação mudaram, mas a maior mudança foi a do paradigma ideológico de nossa época. O papel do intelectual era central num momento de confronto entre o capitalismo e o Comunismo. O imaginário social enxergava a possibilidade de transformação radical da sociedade; nesse contexto, o intelectual tinha um papel singular porque, na teoria, ele era o grande engenheiro social dessa mudança. Com o fim do comunismo, esse paradigma desaparece, e o intelectual revolucionário perde a sua função.
Hoje, a noção de cidadania está mais disseminada; houve uma democratização da sociedade. Ninguém tem direito de falar em nome do outro na sociedade democrática. Na atualidade, não é suficiente ser um intelectual de prestígio para você definir uma tendência. Houve uma adequação do intelectual à sociedade de massa.
O papel do intelectual tradicional é elitista, aliás, o movimento de 1968 era elitista. Ele falava em nome do povo brasileiro. Que povo brasileiro delegou sua voz a uma centena de intelectuais para falar em nome dele? Desde quando o povo brasileiro disse que queria um socialismo revolucionário? Nunca se perguntou ao povo o que ele queria. Nesse sentido, houve uma mudança positiva, porque o intelectual descobriu o seu papel específico.

Olhar Virtual: E que papel é esse?

Para mim e falo aqui em termos normativos e não sociológicos, o papel do intelectual é produzir conhecimento crítico da sociedade, mostrar os seus problemas, as possibilidades, as alternativas, reconhecendo os seus limites e espaço que lhe é próprio. Hoje, está claro que não é por ter tido uma educação mais adequada que o intelectual saiba o que é melhor para o povo. Antes ele achava que era autorizado para decidir o que era melhor para o país. Hoje, está mais limitado no seu espaço de produção de conhecimento e análise crítica da sociedade.

Olhar Virtual: Quais as principais mudanças verificadas nos últimos 40 anos na relação entre os intelectuais e a Política?

Há, de fato, um problema do intelectual com a política hoje. Mas ele tem a ver com a crise do sistema de representação e mais especificamente com a crise dos partidos políticos. Atualmente, no Brasil e na América Latina, os partidos políticos perderam a capacidade de produzir novas utopias; eles já não atraem a imaginação intelectual. Então há realmente esse distanciamento, mas não é culpa dos intelectuais. Esses acabaram partindo para a produção de conhecimentos acadêmicos específicos ou foram para o mundo das ONGs. Ao mesmo tempo, há um lado positivo nesse processo, porque sempre houve o perigo de os intelectuais serem instrumentalizados por partidos políticos. Do ponto de vista político, a maior parte das transformações foi positiva.


Olhar Virtual: Quais os aspectos negativos do papel do intelectual hoje?

No mundo da hiper informação, da rapidez, da instantaneidade, existem elementos negativos à produção de conhecimento mais sólido da realidade social. Você, atualmente, não tem tempo para elaborar uma idéia, expressar um conceito. Tudo tem que ser rápido e depende de um clique. É um mundo pouco agradável para alguém formado na velha tradição intelectual. Esse novo mundo coloca certos desafios que nem todos da antiga geração podem enfrentar.

Olhar Virtual: O senhor acha que a tendência é os intelectuais estarem cada vez mais encastelados nas instituições?

O intelectual está institucionalizado, porque se profissionalizou. Ele hoje é mais profissional e restrito, perdeu um pouco da imaginação criativa. Mas é sempre bom que ele mantenha autonomia e distância crítica. Hoje se percebe que a maior parte das pessoas escreve relatórios contratados por empresas, ONGs ou com recursos do governo, todos eles com agenda pré-determinada. Pode-se dizer que há uma certa perda de grandeza no pensamento intelectual brasileiro ou que faltam grandes intelectuais. Isso é verdade. Mas insisto: esse dado é expressão do momento histórico. Se tivéssemos partidos políticos capazes de mobilizar a imaginação dos intelectuais, possivelmente teríamos uma produção de maior grandeza. O problema não é tanto dos intelectuais, mas da a sociedade e fundamentalmente da vida política que castra a imaginação de todos os cidadãos.

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