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Edição 260      28 de julho de 2009


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Uma terapia como profissão

Sofia Moutinho – AgnPV e Miriam Paço – AgnCT


Toda quarta-feira à  tarde os músicos da banda “Cancioneiros do Ipub” se reúnem para ensaiar e criar novas melodias e letras de músicas. Tudo é feito em grupo, da montagem dos instrumentos à decisão sobre a posição que cada um deverá ocupar no palco. Jana, enfeitada e maquiada, faz exercícios para a voz, enquanto seu marido, Antônio Cláudio, testa alguns acordes no contrabaixo com a ajuda de Rafael. Suados, Orlando e Bernardo carregam os instrumentos retirados do carro de Vandré. No dia seguinte, eles  gravarão cenas para uma das novelas mais assistidas do país.

Dois CDs e um songbook compõem a trajetória da banda, que tem 13 anos de carreira e é formada por pacientes e funcionários do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Ipub). Pioneiros entre as bandas formadas através de grupos psiquiátricos no Brasil, os “Cancioneiros” enfrentam hoje o desafio da profissionalização da sua música, sem perder o foco na defesa do tratamento mais humanizado e na inclusão do paciente psiquiátrico na sociedade. 

A banda foi criada pelo musicoterapeuta Vandré Vidal ao perceber que, durante as sessões de musicoterapia do Hospital-Dia do Instituto, alguns pacientes levavam composições próprias e manifestavam o desejo de registrá-las. Desde o início, o grupo  “Cancioneiros” passou por transformações, mas ainda mantém parte de sua formação inicial. Hoje é composto por oito pacientes e dois funcionários: Rafael Martorelli (guitarra), Bernardo Garcia (bateria), Jana Almada (vocal), Demétrio Lucas (percussão), Orlando Baptista (guitarra), Antônio Cláudio (contrabaixo e guitarra) e Luís Carlos (técnico de som), além de Vandré e da ex-estagiária de psiquiatria Glória Fairbairn (vocal), que atua como voluntária. A banda conta ainda com a participação especial de Elizabete Araújo, a Bete, que, por razões de saúde, não pode comparecer regularmente aos ensaios. 

A aparição dos “Cancioneiros” em rede nacional foi resultado do aperfeiçoamento musical e também da defesa por um tratamento psiquiátrico mais humanitário. “Foi muito legal participar da novela. Foi uma chance para a divulgação da nossa banda e do nosso trabalho. Fiquei muito feliz e queria voltar a aparecer na tevê. Queria colocar mais músicas da gente na novela”, contou Antônio Cláudio. “A banda mudou minha vida porque eu faço o que eu gosto”, disse Orlando, compositor que, desde criança, destacava-se na poesia e que, nas horas vagas, se dedica à atividade de massoterapeuta.  

A profissionalização da banda “Cancioneiros” atende a uma exigência de mercado. “Quando nós começamos a fazer os shows, as pessoas pensavam: ‘Ah não, grupo de pacientes deve ser uma coisa malfeita.’ Mas quando elas perceberam que as músicas eram dançantes e as letras eram interessantes, ficaram impressionadas. As pessoas têm muito essa ideia de que doente não pode fazer nada. Tanto é que agora a gente está tendo que se profissionalizar”, disse Vandré.  

Inclusão 

O grupo já foi patrocinado pela Fundação Universitária José Bonifácio (FUJB), mas hoje se mantém com a venda de CDs, apresentação em shows e verbas do próprio Ipub. Apesar da atual tentativa de profissionalização, a banda defende que o mais importante não é o lucro financeiro, mas dar visibilidade ao trabalho de inclusão social do grupo.
Para conseguir financiamento para o grupo e possibilitar a capacitação profissional dos pacientes na área musical, Vandré pretende criar um estúdio-escola,  espaço para o desenvolvimento do trabalho musical da banda onde músicos de fora poderiam gravar e usufruir da estrutura mediante pagamento. A ideia é que a participação da comunidade no estúdio-escola traga financiamento para a banda. “Para os músicos, essa iniciativa representaria uma forma de inserção no mercado de trabalho, pois, pelo fato de receberem benefícios do governo, só lhes resta o trabalho de freelancer”, disse o musicoterapeuta.

O grupo superou os limites do Instituto e já fez shows no Rio, Bahia e São Paulo. Em 2008, se apresentou no Canecão, ao lado de Beth Carvalho, Diogo Nogueira e do cantor Jau, a convite do “Loucos por Música”, criado pela produtora cultural Lana Braga. Fundado em 2005, o projeto promove shows com o intuito de romper preconceitos em relação aos pacientes psiquiátricos. Segundo ela, a participação dos “Cancioneiros” no projeto propiciou o reconhecimento dos pacientes como músicos: “A banda está fazendo seu trabalho, se aperfeiçoando como profissionais do ramo. Muitos ainda não têm nível profissional, mas têm vontade de progredir.” 

Terapia

A banda “Cancioneiros” é também uma forma de terapia para seus integrantes. De acordo com Vandré, a musicoterapia traz importantes benefícios para o tratamento dos transtornos mentais: “A participação nos ‘Cancioneiros’ trouxe maior estabilidade do quadro clínico, redução do número de internações e desenvolvimento de maior sentimento de coletividade.” Além disso, a interação em grupo de pacientes com transtornos psicóticos, como é o caso dos “Cancioneiros”, foi vista como impossível durante muito tempo pelos profissionais de saúde mental. A banda tem mostrado justamente o contrário. 

Ruth Helena Martorelli, mãe de Rafael Martorelli, pôde observar de perto as transformações provocadas pela musicoterapia. “Meu filho é paciente psiquiátrico e dependente químico, e não se adequava a nada. Esse projeto dá aos pacientes a possibilidade de viajar pelo Brasil e se apresentar em grandes casas de show, o que até então era inimaginável. Quando ele está depressivo, só os ‘Cancioneiros’ conseguem tirá-lo da tristeza.” 

Os benefícios do tratamento também se refletem nas letras das músicas. Enquanto no início eles falavam da loucura, da solidão e da tristeza, com o tempo passaram a abordar temas mais alegres, conforme ilustra um trecho da música-tema do grupo: “Quando amanhece o dia penso numa solução, vem aquela melodia para espantar a solidão.” 

Vandré contou que a música passou a ter uma conotação quase existencial para os músicos da banda. “A música é a vida desses pacientes. O projeto ‘Cancioneiros’ atendeu a um desejo de elaborar melhor a questão musical na vida deles. A gente oferece a possibilidade de desenvolver a música em um espaço terapêutico, mais saudável.”

O Instituto de Psiquiatria foi uma das primeiras unidades do país a implantar a musicoterapia no tratamento de transtornos psiquiátricos, em 1968, quando foi criada a Associação Brasileira de Musicoterapia (ABMT). Entretanto, bem antes disso, quando no Palácio Universitário da UFRJ ainda funcionava o Hospício Pedro II, já era oferecido o tratamento com instrumentos musicais aos pacientes. No Hospital-Dia do Ipub, não há internações e qualquer paciente que se interesse por música pode participar desse tipo de terapia.

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