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Edição 299      16 de junho de 2010


Ponto de Vista

A obra da discórdia

Daniel Barros

Ilustração: Caio Monteiro

A construção de um centro comunitário islâmico de 15 andares a duas quadras do Marco Zero, monumento construído no local dos atentados de 11 de setembro de 2001, divide opiniões na mais cosmopolita cidade do Ocidente. O antropólogo da UFRJ, Renzo Taddei, que morava em Nova Iorque quando ocorreram os atentados, explica que a obra — aprovada pelo Conselho Municipal da cidade no dia 25 de maio — pode sinalizar uma importante transformação na sociedade americana se a cidade conseguir trabalhar bem a questão da construção desse enorme templo mulçumano. Mas uma manifestação contrária, no dia 6 de junho, que contou com cerca de 5 mil participantes mostra que esse trabalho não será fácil.

Apesar das demonstrações de insatisfação de alguns novaiorquinos, o projeto conta com o apoio do prefeito da cidade, Michael Bloomberg e foi aprovado por 29 votos a um (10 abstenções) no conselho. Taddei explica que o respaldo governamental é inevitável, devido ao apreço que a sociedade americana tem pelas idéias de liberdade religiosa e de que não deve haver interferência pública no espaço privado – e, nesse caso, os interessados em erguer a mesquita são os proprietários legais do edifício onde ela deve ser instalada. Já o fato de os parentes e amigos das vítimasse sentirem ofendidos com a construção da mesquita tem, de acordo com o antropólogo, uma explicação bem mais complexa.

Renzo Taddei, que lecionava em 2001 no Borough of Manhattan Community College, também a duas quadras do World Trade Center, explica que a resistência ao projeto da mesquita, para alguns americanos, passa por duas questões fundamentais: como os eventos de 11 de setembro afetaram a forma como a população da cidade se relaciona com aquele espaço urbano? E como os americanos, na era Bush, passam a se relacionar com o islamismo?

Transformação do espaço em Nova Iorque

Para explicar a transformação no espaço, Taddei recorre ao antropólogo brasileiro Roberto DaMatta. Em seu livro “A Casa e a Rua”, DaMatta diz que a “casa” é o lugar onde estão concentradas as relações de afeto familiares – família e casa aqui usadas em sentido amplo -, e “rua” é o ambiente dos trânsitos, fluxos e, de certo modo, da impessoalidade. E ele ainda menciona a existência do “outro mundo”, que remete à morte e à religiosidade. Na “rua” as pessoas seriam mais liberais. Já a afetividade relacionada a “casa” gera posições mais conservadoras. De certa forma, a idéia de que Nova York é uma cidade cosmopolita, centro econômico mundial, gera a percepção de que Nova Iorque seria apenas “rua”. É como se não existissem razões para as pessoas manifestarem sentimentos conservadores típicos do espaço doméstico. Mas as sociedades têm sempre os dois lados, e o debate em torno da mesquita evidencia isso.

Nesse contexto surge o Ground Zero, como chamam os americanos o espaço onde ocorreram os atentados em 11 de setembro, em Nova Iorque. Taddei afirma que esse é o lugar de um massacre onde muitos corpos jamais foram encontrados, o que, simbolicamente, o transforma em um cemitério a céu aberto, especialmente para as famílias dos mortos. Ele lembra que o governo dos Estados Unidos investiu dinheiro e tempo buscando minuciosamente corpos, ou mesmo pedaços minúsculos de corpos, nessa região.

Para o antropólogo e professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, as sociedades ocidentais têm dificuldade em lidar com o fim da existência. A morte evidencia os limites do pensamento racional. Os rituais de passagem, como velórios e missas de sétimo dia para as comunidades católicas, por exemplo, são fundamentais para organizar o pensamento e as emoções dos que continuam vivos. Mas como muitas famílias não conseguiram achar os corpos dos seus mortos, o Marco Zero adquiriu um enorme valor sentimental. A separação entre “casa” e “rua”, que segundo DaMatta organiza nossa percepção do espaço, e portanto nossa vida social, deixa de existir para muitas das famílias envolvidas. “A proposta de construção da mesquita ocorre, desta forma, num contexto de enorme confusão simbólica, o que naturalmente gera muita ansiedade”, explica Taddei.

Relação dos americanos com o islamismo

O outro aspecto relevante na questão da resistência à construção do centro comunitário muçulmano, que se chamará Córdoba House, é o significado que o islamismo assume ao longo do governo George W. Bush. “Bush quis dividir o mundo em categorias estanques, como, por exemplo, quando usa a expressão ‘eixo do mal’”, diz o antropólogo. Taddei menciona que houve um silencio estratégico, por parte da Casa Branca, a respeito dos negócios da família Bush na Arábia Saudita, inclusive com a família Bin Laden. Tal engajamento comercial no mundo islâmico denota a compreensão de Bush de que “muçulmano não é tudo igual”. No entanto, explica Taddei, o esforço de preparar o país para a guerra (invasão do Afeganistão e posteriormente do Iraque) passou pela demonização e desumanização do inimigo, e isso pode ter gerado percepções coletivas do mundo islâmico muito negativas junto à população americana. O fato de Bush se declarar renascido na fé (encontrou a fé protestante depois de adulto) e dizer que se comunicava com Deus nos corredores da Casa Branca só reforçou as polarizações radicais na percepção das relações entre religião e política.

Além disso, mais do que uma questão meramente diplomática, o então presidente dos Estados Unidos conclamou o país à guerra e adotou um discurso que ressaltava a necessidade dos americanos serem fortes e patriotas, o que os levou a negligenciarem emoções traumáticas, advindas da experiência dos ataques de 11 de setembro. Renzo Taddei conta que a mídia americana embarcou nesse esquema, aceitando, por exemplo, o pedido do Pentágono para que não fossem mostrados caixões de soldados americanos vindos do Afeganistão e do Iraque. E, além disso, os principais veículos de comunicação não deram o espaço devido para que os vários líderes muçulmanos americanos pudessem participar de forma efetiva dos debates públicos, oferecendo discursos de contraposição às polarizações simplistas e à associação direta dos ataques às torres ao islamismo.

Se no contexto do Bush as pessoas não puderam manifestas suas fraquezas e sentimentos, estes acabam ressurgindo em outro momento. “Uma das características do ritual da morte a necessidade de se viver o processo do luto”, esclarece Taddei. Ele explica que Bush interrompe esse processo para muita gente e, hoje, com a proposta de construção da mesquita a duas quadras do Marco Zero, algumas pessoas estão botando para fora essas emoções.

Conquista islâmica

Na opinião do antropólogo, o que se configurará na região é um conflito necessário. Nas audiências do Conselho Municipal, vários manifestantes chegaram a dizer que os muçulmanos podem enxergar a construção da mesquita de 15 andares perto do Marco Zero como uma vitória do islã, algo como “atacamos e conquistamos”. “É claro que isso é uma visão muito conservadora e tendenciosa, e mostra que, em termos simbólicos, o desafio é enorme”, diz Taddei.
Ele destaca, no entanto, que não se pode desconsiderar de forma arrogante o sentimento das pessoas que se posicionam contra a construção. Para o professor, é preciso ouvir os dois lados, sem correções políticas nem moralismos, e efetivamente pluralizar o debate. “A construção da mesquita é de fato uma boa idéia, no sentido de desenterrar esses sentimentos. Ela pode marcar uma nova fase na história americana, da desmontagem desses estereótipos, uma das heranças perversas da era Bush, e da reconstrução de uma esfera pública efetivamente aberta e plural. Mas esses sentimentos precisam ser devidamente trabalhados, para que essa situação não se transforme em mais um barril de pólvora”, prevê o antropólogo.

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