Olho no Olho

Mulher em primeiro lugar

Vanessa Sol

Historicamente o papel da mulher na sociedade era apenas de mãe e esposa, sendo- lhe negada o acesso ao estudo, ao trabalho e a efetiva participação na vida social de sua comunidade. No entanto, aos poucos a mulher foi buscando seu espaço e se inseriu no mercado de trabalho, mas as condições impostas eram injustas. Pela mesma jornada de trabalho dos homens (16 horas por dia), elas ganhavam apenas um terço do que estes ganhavam.

No dia 8 de março do ano de 1857, operárias têxteis de uma fábrica em Nova Iorque entraram em greve para reivindicar a redução dessa desumana jornada de trabalho, tanto para mulheres quanto para homens. As operárias foram fechadas na fábrica onde, entretanto, se iniciou um incêndio, que vitimou fatalmente cerca de 130 delas. Em 1910, numa conferência internacional de mulheres realizada na Dinamarca, foi decidido, em homenagem àquelas mulheres, comemorar o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher.

Neste contexto histórico de luta, as mulheres conseguiram avançar na conquista de igualdade de direitos e deveres. E para comemorar uma data tão importante o Olhar Virtual foi buscar a opinião de duas professoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para falar se as mulheres já conseguiram, na sociedade contemporânea, ter seus diretos reconhecidos ou elas ainda são discriminadas? Se existe discriminação, de que forma ela pode ser percebida?

As entrevistadas desta semana são: Suely Souza de Almeida, professora Titular da Escola de Serviço Social e decana do Centro de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ; e Margarida Maria Lacombe Camargo, professora da Faculdade de Direito.

Suely Souza de Almeida
Professora Titular da Escola de Serviço Social e decana do Centro de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ

"As mulheres brasileiras avançaram muito na conquista de direitos, o que é fruto do longo processo de organização, resistência e lutas, mas também das conquistas havidas no plano internacional. Na esfera legislativa, a título de exemplo, a Constituição brasileira, sobretudo no que se refere à legislação sobre a família, aboliu numerosas discriminações contra as mulheres. Em decorrência da Constituição e dos acordos e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, toda parte do Código Civil de 1916 referente à família foi revogada e o novo Código de 2003 igualou homens e mulheres em direitos e obrigações. Importantes alterações vêm sendo introduzidas também no Código Penal. Ainda há muito que se fazer neste âmbito, permanecendo pendentes, entre outras, questões relacionadas à interrupção voluntária da gravidez e à violência doméstica. Esta ocorre em larga medida, atingindo predominantemente mulheres, sendo ainda muito naturalizada e banalizada no âmbito judiciário. Na área das políticas públicas, estamos apenas começando, com a implantação de diversos equipamentos sociais, como centros de referência, casas-abrigo, delegacias especializadas, mas ainda há grande fragmentação, descontinuidade das ações, baixo grau de institucionalidade dos programas e pouco ou nenhum diálogo entre as áreas de segurança, justiça, saúde, educação e direitos humanos, para me referir apenas às mais evidentes.

No campo do trabalho, a mulher ainda sofre com maior precarização das suas condições de trabalho, flexibilização dos seus direitos e discriminação salarial. O Censo de 2000 do IBGE revela um dado contundente: o rendimento médio mensal de mulheres negras ou pardas equivale a cerca de 70% do rendimento médio mensal de homens negros ou pardos, 53% do rendimento médio mensal de mulheres brancas e 34% do rendimento médio de homens brancos.

No ensino superior, para ficarmos na UFRJ, os dados disponíveis sobre estudantes classificados nos vestibulares de 2000 e 2001 mostram, que das 90 opções oferecidas para ingresso, 26 eram claramente segmentadas por sexo, sendo 16 das opções de curso com composição predominantemente – em alguns quase absolutamente – feminina e 10 com composição maciçamente masculina. As opções consideradas de base feminina estão fortemente vinculadas a funções sociais que envolvem assistência, nutrição, educação, cuidados em geral com o corpo, a saúde, a casa, o entorno. Mais do que segmentação sexual do mercado, há imbricações visíveis entre escolhas profissionais e identidade de gênero.

Felizmente, a temática de gênero está cada vez mais presente nos debates de natureza acadêmica e política. A demanda por formação é crescente e diversificada: do movimento estudantil, de sindicatos, de movimentos sociais variados, de profissionais envolvidos na implementação de políticas públicas. Na UFRJ, temos disciplinas na graduação e na pós-graduação, cursos diversos de extensão, núcleos e laboratórios de pesquisa, teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso sobre o tema, além de publicações diversas. Desde o início de 2005, assumimos a coordenação do Centro de Referência de Mulheres da Maré, experiência que articula ensino, pesquisa e extensão, envolvendo várias unidades acadêmicas da UFRJ. Até o final do próximo ano, pretendemos inaugurar o Centro de Referência da Mulher, na Ilha do Fundão.

Estudos sistemáticos sobre o tema, debates, formulação de políticas públicas, formação na perspectiva de gênero e um ativo trabalho de crítica e reelaboração da cultura são meios possíveis de se romper com os preconceitos, as discriminações, a injusta divisão do trabalho que se processa entre homens e mulheres, seja na vida pública ou na vida privada, e de superar as desigualdades daí derivada”.

Margarida Maria Lacombe Camargo Professora da Faculdade de Direito

"De fato a mulher historicamente ficou muito circunscrita ao lar, enquanto o homem ganhava o espaço público. Tais razões levaram a que na primeira metade do século XX elas lutassem pelo direito de voto, por exemplo. Em seguida, a mulher passou a buscar o mercado de trabalho, para maior autonomia, tanto financeira quanto cultural, pois com a experiência fora de casa também teria opinião sobre a vida pública e a sociedade. Entretanto, o que mais me impressiona atualmente, é a velocidade com que o comportamento feminino vem se modificando.

A mulher, por exemplo, não precisa mais do homem para ter filhos, pois pode coletar esperma em bancos de congelamento. Talvez de forma não tão radical, as mulheres encontraram condições de criar sozinha seus filhos, isto é, ser mãe, independentemente do casamento. E um dos fatores que levaram a esse estado de coisas, foi a autonomia financeira. A mulher soube ocupar um espaço importante no mercado de trabalho, em igualdade de condições com os homens. Há muitas mulheres no Poder Judiciário, por exemplo. Aliás, nos últimos concursos para a magistratura foi apontado um número significativo de candidatas selecionadas. No Ministério Público e demais carreiras  profissionais do Direito, a mesma coisa. No meio intelectual, ainda predominantemente masculino, ela vem ocupando espaço. Mas acho que ainda é uma área restrita à mulher. São poucas as filósofas, por exemplo. Há profissões ainda femininas por excelência, como a cozinheira, a costureira, a esteticista, a enfermeira, a manicure, a massagista etc, que, apesar de menor expressão, vêm sendo disputadas também pelos homens. No entanto, os homens também vêm ocupando espaços antes restritos à presença feminina.

Em lugar de discriminação percebo uma constante luta pela competência que, uma vez alcançada, garante um espaço na vida pública. Isso tudo é muito custoso, porque a mulher, além de boa profissional e atuando em igualdade de condições com os homens no mercado de trabalho, cuida da família. Por outro lado, isso a faz genial e altamente criativa. Acho que a mulher moderna sabe mostrar sua genialidade, de se manter bonita, atraente, boa mãe, boa dona de casa, e, ao mesmo tempo, capaz para o trabalho, repito, em igualdade de condições com os homens. Acho a mulher mais ágil para o trabalho. Me parece que consegue conjugar vários fatores ao mesmo tempo, o que é importante. O homem já tem uma inteligência mais focada.  O homem ainda é o dono da verdade. Deus se fez homem. Os líderes religiosos são homens. Penso, então, tratar-se antes de uma visão cultural do que propriamente de uma discriminação. A discriminação ocorre quando a diferença, que prejudica, se dá de forma injusta, ou seja, por força de argumentos que não se sustentam como razoáveis, como o fato de a mulher poder engravidar. O que ocorre, no final, é que a mulher engravida, tem seus filhos, cuida deles e ainda é tão competente quanto os homens, quando a isso se propõe, é claro. Tenho pena da mulher que abre mão de sua condição feminina para ter autonomia financeira, lançando-se de corpo e alma ao trabalho, sem deixar espaço para as relações afetivas. A mulher capitalista e poderosa muitas vezes é só, porque não é fácil conjugar todos esses aspectos. Por tudo, acho a mulher moderna mais do que uma heroína; ela é genial. Alguma discriminação vejo relativamente aos padrões de beleza, que demandam jovialidade constante. Nesse aspecto, a mulher não raramente se vê alijada de uma relação amorosa.. O amor condicionado à beleza física, revela discriminação e miopia.

Acho, porém, discriminatórios os argumentos que nos levam a pensar que a mulher precisa lançar mão da sensualidade para serem reconhecidas profissionalmente. Homens machistas assim o fazem, mas não acredito que a mulher se sujeite a tanto, com freqüência, ou propositalmente, como estratégia para o emprego. Quando o faz, é por encontrar-se sujeita a uma necessidade. O Direito tem procurado proteger a mulher do assédio sexual, da mesma forma com que procura proteger o trabalhador de todo tipo de exploração. Exploram-se os homens tal como exploram-se as mulheres, desrespeitando sua dignidade, seja mediante  salários baixos, na quantidade de horas trabalhadas, no abuso sexual etc. São resquícios de uma sociedade arcaica e de um capitalismo rudimentar que, infelizmente ainda persiste em boa parte do Brasil".