Olho no Olho

Trabalhadores nem tão livres assim

Aline Durães

imagem olho no olho

No último sábado, dia 13, o Brasil comemorou 118 anos do fim oficial do regime escravista. Depois de quase quatro séculos de exploração, maus tratos e muita resistência, em 1888, os negros conseguiram se desfazer de suas algemas e conquistaram o direito à liberdade. A Lei Áurea foi assinada pela então princesa imperial, Isabel de Bragança. O sonho de um trabalho digno e remunerado parecia mais próximo de se concretizar dentro de uma lógica republicana.

Anos depois, na década de 30, as leis trabalhistas do governo Vargas legalizaram diversos direitos dos trabalhadores, concedendo a eles uma série de garantias, como um salário mínimo, por exemplo, inimagináveis no sistema escravagista do século anterior.

A concentração de renda e as desigualdades sociais, no entanto, não se dissiparam com tais avanços legais. O salário extinguiu o direito de propriedade do patrão sobre o escravo, mas a carência de recursos ainda aprisiona muitas pessoas às más condições de vida. As senzalas deram lugar às favelas e a fome deixa mais marcas que o chicote do capataz. O trabalhador, independentemente de sua origem racial, vive sob a opressão de políticas econômicas perversas, que restringem seu universo de escolhas e cerceiam o exercício prático da liberdade.

Para analisar as mudanças verificadas ao longo desses anos, que separam o assalariado atual do escravo colonial, e refletir sobre a realidade dessas transformações, o Olhar Virtual trouxe as opiniões da pesquisadora do Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Sônia Benevides, e do professor Manolo Florentino, da Pós-Graduação em História Social, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS).

 

Sônia Benevides
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC)

“Os escravos algemados e vendidos como mercadoria já não existem no Brasil, mas a falta de oportunidade e de treinamento profissional para boa parcela dos trabalhadores ainda aprisiona esses indivíduos a condições exploratórias de emprego.

A Folha de São Paulo denunciou, no ano passado, o caso de carregadores que morreram em vista do esgotamento físico causado pelo transporte de cana-de-açúcar. Embora eles não fossem escravos e lhes fosse dado o direito de ir e vir, a necessidade financeira que os prendia a essa forma de serviço acaba por se constituir em uma forma de escravidão.

Que oportunidade de trabalho menos desgastante foi dada a esses indivíduos? Como eles podiam viver se não possuíam fontes de renda alternativas? Ou ele trabalhava daquela forma, ou restava o desemprego.

Nesses 118 anos, algo permaneceu intacto: o abandono das classes menos favorecidas. Faltou uma educação forte para a construção da cidadania efetiva, que permitisse consciência aos mais humildes. Educação gera conscientização e, a partir daí, os trabalhadores podem cobrar mais mudanças e estar mais interessados em transformar a sua situação de exclusão e de exploração.

O fato é que o indivíduo fica tantas horas do seu dia preso no emprego que, mesmo que o salário permita uma especialização ou uma educação melhor, ele não tem ânimo para poder combinar trabalho e estudo, o que impede que ele ganhe uma remuneração mais alta. As conseqüências disso são enormes e graves. Os filhos desses trabalhadores vêem o quanto o pai trabalha e percebem que, mesmo assim, ele não consegue ascensão profissional. Esses jovens ficam desestimulados e, se lhes for oferecida uma forma mais fácil de ganhar dinheiro, eles acabam aceitando. Daí, o número de jovens envolvidos em crimes e no tráfico de drogas.

A solução é uma sociedade mais participativa. Hoje, muitas pessoas votam, mas não cobram. Grande parte delas sequer lembra em quem votou ou por que votou em determinado candidato nas últimas eleições. Os critérios de escolha dos candidatos das camadas mais baixas são ainda muito questionáveis. Isso só pode ser resolvido com a conscientização dessa parcela do povo brasileiro”.

Manolo Florentino
Professor da Pós-Graduação em História Social, do Departamento de História da UFRJ

“O nosso passado escravista tem grande influência sobre o atual painel de concentração de renda, mas não podemos colocar toda a culpa da situação social de exclusão na escravidão. Ao transferir esses problemas para as gerações passadas, nós nos isentamos de nossa responsabilidade sobre eles.

Outros países, como os Estados Unidos, por exemplo, praticaram igualmente o escravismo e, de alguma maneira, conseguiram superar isso. O Brasil não.

Embora existam grandes dificuldades de cidadania, não dá para afirmar que um operário ou um integrante das classes menos favorecidas seja um escravo. Mesmo os mais pobres, hoje, gozam de uma série de direitos não oferecidos na escravidão. Ali, o sujeito não era dono nem de si mesmo.

Escravos e trabalhadores se aproximam, guardadas as suas medidas, por causa da exclusão econômica. Mas quando pensamos em cultura e política, vemos que a situação mudou bastante. O operário, hoje, tem acesso a elementos que o escravo nem sonhava em ter.

Uma carteira de trabalho e o direito ao voto fazem muita diferença.

Os trabalhadores são especializados e têm um grau educacional elevado, quando comparados aos escravos. O acesso à informação é bem maior no presente. Isso demonstra que eles possuem instrumentos que os auxiliam a perceberem o mundo de maneira mais crítica.

Sendo assim, os operários não são vítimas das circunstâncias. Se eles se portam como vítimas, acabam sendo, de alguma forma, co-responsáveis da exclusão que sofrem. Através do voto, podemos realizar um projeto político. Boa parte do colégio eleitoral é composta por trabalhadores, e cabe a eles não votar no candidato que pouco investe nos serviços aos quais esses indivíduos precisam recorrer, como um hospital público, por exemplo.

Os grupos subalternos, como escravos ou camponeses, sempre se organizaram e agiram em resistência à opressão. Por isso, não adianta eleger a escravidão, o Estado ou o imperialismo internacional como causas das nossas dificuldades atuais. Lamúrias não resolvem problemas. Serviços públicos mais eficientes e melhores níveis de vida não caem do céu. O jeito é se organizar. Precisamos de uma sociedade civil mais organizada e combativa, que lute em prol do fim das desigualdades”.