Olho no Olho

Cenas de cinema ou da vida real

Kadu Cayres

imagem olho no olho

O filme inédito "Tropa de Elite", de José Padilha, sobre o Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar), cuja estréia nos cinemas está prevista para outubro, vem sendo alvo de ferrenhas críticas. Protagonizado pelo ator Wagner Moura, no papel de um capitão do Bope inspirado numa fusão de personagens reais, o longa-metragem, que foi alvo de pirataria e está sendo vendido em cópias ilegais por camelôs, no Rio de Janeiro, enfoca práticas de corrupção e atos de violência desmedida cometidos por membros da corporação.

Diante de uma obra de ficção que propõe mostrar o lado corrupto e violento da Polícia Militar (PM), a equipe do Olhar Virtual convidou os professores Marcos Bretas e Paula Poncioni, um do Instituto de Filosofia e Ciências Sócias (IFCS) e o outro da Escola de Serviço Social (ESS), para discutir questões a respeito da PM e suas práticas violentas, do comprometimento do filme com formação da opinião pública, e acima de tudo, saber até que ponto filmes com esse tipo de conteúdo contribuem para prejudicar a imagem da polícia. Confira a opinião dos professores.

Marcos Bretas

“Eu acho o filme extremamente instigante devido à série de discussões que ele nos propõe. A meu ver, seu objetivo é de nos colocar do lado de um narrador que defende uma polícia violenta, preocupada em resolver os problemas sociais na base da tortura, da matança. Essa é a sensação que tenho. Talvez isso seja a armadilha em que vivemos. Buscamos alternativas para corrupção no uso da força bruta, e isso salta aos olhos como algo estupidamente perturbador. A situação de violência que vivenciamos nos faz ter a impressão que o melhor é resolver as coisas na pancadaria. O filme, nesse sentido, ressalta essa idéia por meio da desumanização de um de seus personagens: o jovem aspirante e estudioso que quer crescer profissionalmente, mas no final se transforma em assassino. Se pensarmos nessa ação como uma defesa disso, é trágico. Se pensarmos como um retrato da única condição de sobrevivência na polícia, também é trágico. Sobreviver na policia, hoje, é preciso uma resistência psíquica muito forte. O trabalhador policial vive sob um estresse, uma taxa tão exacerbada de violência que o acaba contaminando, e nós não oferecemos alternativas para isso. O que é um absurdo, pois devemos perceber e buscar conquistar.

Acho que o filme mostra uma imagem bastante realista da polícia, tornando difícil extrair um julgamento positivo. Entretanto, isso não deixa a sociedade mais descrente do que está da polícia militar. Acho que já chegamos ao fundo do poço, e muito pelo contrário, se o filme faz alguma afirmação é de que existem policias decentes. Agora, o problema é saber o que seria um policial descente. Isso é um jogo ético perigoso. Uma questão não respondida pelo longa-metragem e nem pela polícia é: como os policiais convivem com a corrupção dentro da polícia? O contato entre o decente e o indecente, o corrupto e o honesto, são os grandes dramas não respondidos pela polícia, e no filme isso fica claro. A polícia tem noção de toda a sujeira interna existente, mas não se preocupa em resolver.

Para recuperarmos a Polícia Civil e Militar é preciso fazer com que as mesmas quebrem a identidade interna de silêncio – isso já está começando a aparecer com a denúncia e punição de policiais corruptos, nos últimos anos. Um segundo passo seria conseguir aniquilar a rede de infrações na polícia e levantar discussões mais aprofundadas sobre como se exerce o poder de polícia; como se produz segurança na sociedade. Não podemos esquecer que tudo deve ser pautado numa organização voltada para otimização dos resultados e minimização dos danos. Esse é um ponto crucial, pois se não pensarmos assim, nos entregaremos à barbárie. ”

Paula Poncioni

“Para mim, a polícia (seja a Civil ou a Militar) é um ator super importante na administração pública, pois apresenta um papel fundamental no controle do crime, na redução da violência. Quando você me pergunta como está a imagem da polícia perante a população, lembro-me de uma pesquisa realizada, por mim, com policiais, em que uma das perguntas era justamente “como a sociedade olha para a polícia?”. Em quase todas as respostas as frases “falta de reconhecimento social” e “falta do reconhecimento do trabalho do policial” reinaram dominantes. Na verdade, a sociedade conhece muito pouco das práticas cotidianas da polícia. Ela se pauta pela mídia que é a responsável pela construção de uma imagem errada.

Os meios de comunicação têm poder de construção e desconstrução, mas, lamentavelmente, é como se a polícia não precisasse deles para ter sua imagem denegrida. É triste que a gente continue a ter práticas na polícia que são totalmente contrárias aos direitos humanos, às leis e normas – isso não é apenas por termos sádicos entrando para a polícia militar e civil, mas, sobretudo, por que os indivíduos (PMs) são socializados nessa mesma sociedade, que de alguma maneira, legitima a arbitrariedade.

A história desse país colocou a polícia no papel de lixeiro da sociedade (o primeiro a usar essa expressão foi o professor da UFMG, Antônio Luiz Paixão), o que é uma leitura possível quando nós pensamos que o que sobra para a polícia é algo repugnante, que muitas vezes já está em situações limite. Esse papel é exercido através da força desmedida, e por isso digo que a polícia, por si só, constrói uma imagem negativa de si. Acho que poderíamos dizer que ela, até esse momento, não pôde ter um outro papel digno em nossa sociedade.

Quando colocamos a seguinte indagação “É importante termos uma imagem positiva da polícia?”, não tenho a menor duvida de que a resposta é sim. Eu não assisti ao filme, mas acho que ele se propõe ser uma ficção e uma realidade cujo limiar nós não conhecemos. Seria muito bom se pudéssemos colocar na agenda pública a necessidade não apenas de mudar a imagem da polícia, mas de mudá-la num todo.

A solução está em uma maior preocupação do Estado com a PM e a Civil, em saber o que está se formando. Acho que precisamos perguntar o que é um profissional de segurança pública e que profissional queremos. O policial tem que deixar de ser lixeiro e passar a ser servidor público. A força bruta tem que deixar de ser a primeira opção para combater a criminalidade.

Vale ressaltar que existe gente com boas intenções na polícia. Faço um trabalho de campo junto à formação profissional de policiais militares, e há um grupo de jovens policiais que pensam numa polícia chamada cidadã, ou seja, não apenas atrelada aos interesses do Estado. "

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