De Olho na Mídia

Mídia e América Latina: uma lupa sobre Venezuela e Bolívia

Cinthia Pascueto

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Recentemente, a Venezuela, de Hugo Chávez, realizou um plebiscito que decidiria sobre uma nova Constituição para o país, negada pela população. Entre as mudanças propostas, a reeleição contínua da presidência e a ampliação do mandato, atualmente de seis, para sete anos. Já a Bolívia, de Evo Morales, nacionalizou a exploração de gás natural e propõe a reforma agrária. Essa aproximação midiática das situações existentes nos dois países, criticando ambos os governos, apresenta-se constante, procurando em certo aspecto igualar a atuação de ambos os governos. Que relações realmente existem entre Venezuela, Bolívia e os demais países da América Latina? A abordagem da mídia é correta até que ponto? Para responder a esses questionamentos e para esclarecer o tema, o Olhar Virtual convidou Alcino Câmara, decano do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE - UFRJ).

A princípio, Alcino explica que existe, de fato, uma proximidade entre os governos boliviano e venezuelano, mas não da forma como é mostrada. “Tanto na Bolívia e na Venezuela quanto em outros países latino-americanos, como o Equador, governos nacionalistas populistas ascenderam ao poder, fruto da falência do Consenso de Washington, conjunto de medidas apontadas pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como necessárias para que os países pudessem superar a crise da dívida e retomar o crescimento”.  O professor recorda o caso argentino, que adotou conceitos ministrados pelo consenso de Washington em um período de crise ocorrido nos anos 90: “as medidas eram não só inócuas como nocivas à economia nacional: houve incremento da concentração de renda, aumento absoluto de pobreza e miséria, uma série de perdas nos indicadores sociais e também uma grave redução das taxas de crescimento econômico”, enumera.

Após esse acontecimento, conta Alcino, uma série de países latino-americanos adotou em suas eleições o nacionalismo populista ou o partido de esquerda. “Esse procedimento não tem origem apenas na Venezuela e na Bolívia, que tem um governo popular e nacionalista, como também na Argentina, com Nestor Kirchner e agora com Cristina Kirchner, e no Equador, Rafael Correa. Partidos de esquerda também ascenderam no Uruguai, com Tabaré Vázquez, no Chile, com Michelle Bachelet, no Peru, com Alan García, e no Brasil, com Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT). Essa esquerda, no entanto, tem avançado bem menos que os partidos populistas nacionalistas que estão no poder”, opina o especialista.

Alcino Câmara acredita que os maiores problemas são a falta de um projeto bem elaborado e a falta de condições estruturais nos países em que o nacionalismo populista chegou ao poder. “A Venezuela, por exemplo, é um grande exportador de petróleo, mas com poucas indústrias e uma distribuição de renda extremamente regressiva. Chávez pode conseguir melhorar a distribuição de renda, ajudar os movimentos revolucionários de outros países. Contudo, não conseguirá avançar, pois não existem mercado nem condições para criar uma indústria de base nacional com geração de progresso técnico específico e nacional, de maneira que possa dar um salto, como vem acontecendo com China e Índia”, compara o professor.

A Bolívia, por sua vez, “é depositária de recursos naturais capazes de lhe permitir certo grau da liberdade, além de apresentar uma relação econômica profunda como Brasil e maior que com os Estados Unidos, o que a deixa numa situação mais confortável. Entretanto, vive uma contradição, marcada por conflitos e pelo antagonismo, como o existente entre as províncias mais ricas, nos territórios baixos, e as províncias andinas; entre etnias indígenas e os descendentes de espanhóis colonizadores, os criollos; e a disputa pela capital do país, entre as cidades de Sucre e La Paz”, explica Câmara, lembrando que a reforma social esteve diversas vezes em pauta no país, mas retroagia: “Várias vezes, a Bolívia chegou às portas da revolução social, principalmente da reforma agrária, e depois recuava. Acontece que, quando se distribui terras e não avança em outras reformas sociais, por exemplo, nas cidades, cria-se um partido de sustentação da direita: os camponeses passam depois a proprietários e a defender essa propriedade”, explica, lembrando preceitos de Marx sobre a propriedade privada.

Câmara explica, diferentemente da Ásia, onde há em curso um processo de capitalismo organizado que procura fazer com que esses países se integrem ao centro dinâmico do sistema capitalista, a América Latina está à deriva. “As duas forças que temos são partidos de esquerda, que, no entanto adotaram o ideário liberal deixando de ser esquerda para isso, e o nacionalismo populista, que avança, mas encontra problemas”, aponta o decano e conclui: “Ainda não apareceu um projeto alternativo que tente puxar o Atlântico Sul, formando uma unidade econômica. É necessário estabelecer uma integração dessa área para que se consiga um novo processo de repactuação das posições no contexto internacional e para deixar de ser tão dependente como tem sido”, incentiva o especialista.