Ponto de Vista

Violência sexual: traumas e possíveis soluções

Cinthia Pascueto – AGN/ Praia Vermelha

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No início do mês, a nadadora brasileira Joana Maranhão acusou seu ex-técnico Eugênio Miranda de tê-la molestado sexualmente na infância, quando a atleta tinha apenas nove anos de idade. A repercussão da denúncia levantou discussões a respeito dos traumas causados pela violência sexual, visto que a nadadora afirma que, somente agora, onze anos após o abuso, conseguiu superar o trauma que deixou marcas em sua vida social, profissional e em seu comportamento, segundo ela.

Para esclarecer sobre os traumas causados pelo abuso sexual, o Olhar Virtual convidou Rosana Morgado, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS-UFRJ), para uma entrevista.

Olhar Virtual: Existem formas diferenciadas de violência sexual?

Existem, pois, dependendo da situação, pode se tratar de abuso sexual incestuoso ou não-incestuoso. No primeiro caso, mais que um vínculo de consangüinidade, existe um vínculo de confiança entre a criança e o adulto. E esse vínculo é rompido pelo adulto através do abuso sexual que ele comete contra a criança. É o caso de Joana Maranhão, que afirma ter sido vítima de abuso sexual de seu técnico, certamente alguém em quem ela confiava. Essa violência pode acontecer também com ou sem contato físico. É o caso do voyeurismo, quando o agressor observa a vítima tomar banho, obriga-a a trocar de roupa em sua frente etc. De qualquer forma é sempre uma violência contra a criança e certamente contra a mulher também.
Em tempo, é preciso esclarecer, quando falamos de abuso sexual, estamos nos referindo à violência geralmente praticada por adultos homens em relação a meninas e mulheres, pois essa situação estatisticamente configura uma porcentagem maior.

Olhar Virtual: Quais os traumas causados por essa forma de violência? Existem diferenças entre as conseqüências de um abuso sexual durante a infância e a fase adulta?

Os traumas provocados a uma criança são diferenciados em relação às conseqüências da violência sexual contra a mulher. Por outro lado, são inúmeros os casos de mulheres adultas hoje vítimas de algum tipo de violência sexual e vítimas de abuso ainda na infância. De qualquer maneira, certamente vai trazer prejuízos para a constituição psíquica dessa criança e muitos problemas emocionais.

Na infância, a manifestação do trauma pode acontecer de forma variada. Pode ocorrer de crianças que não faziam mais xixi na cama, voltarem a fazer – a manifestação de sintoma -, evidenciando que algo de errado está acontecendo e destoante do comportamento que ela já apresentava; crianças muito espertas podem se tornar introspectivas, agressivas ou podem ter um comportamento muito sexualizado.

A pessoa pode também apresentar um comportamento violento e até auto-destrutivo. Existem inúmeros casos de mulheres adultas que se envolvem em relacionamentos altamente destrutivos porque não conseguem ter uma relação saudável com o próprio sexo, encarando-o como uma coisa suja, com a qual ela não pode ter intimidade. O sexo não foi apreendido por elas como um momento prazeroso, de entrega, de troca. Elas podem também apresentar um comportamento bastante depressivo.

Olhar Virtual: Como devem agir as pessoas próximas às crianças vítimas de violência sexual?

Em primeiro lugar, é necessário observar alterações de comportamento da criança, pelos membros da família, da escola e do campo da saúde. Um professor conhece os seus alunos e seu comportamento habitual, da mesma forma que o médico pode identificar durante uma consulta um comportamento que evidencie uma situação de abuso sexual vivida pela criança. De toda forma, a superação do trauma pela criança vai depender do tipo de apoio que ela receba dos familiares. O problema é que, em uma grande parcela dos casos, elas são desacreditadas pelas famílias, principalmente quando se trata de abuso sexual incestuoso. Se ela tem o apoio de outros membros da família para validar sua palavra, é claro que terá maiores condições de superar esse trauma, pois ela vai se sentir amparada. Até porque quanto maior o envolvimento do agressor com a vítima, maiores são as dificuldades de superação.

Olhar Virtual: Por que a criança seria desacreditada?

Para responder a essa questão, é necessário entender que o perfil do agressor não é aquele que muitos veículos de comunicação fazem acreditar, do homem que agarra indiscriminadamente qualquer menina que passe em sua frente. Existem agressores sexuais com comprometimento mental, mas a grande maioria não apresenta essa característica. São homens considerados normais, com um temperamento tranqüilo fora de sua residência, que por isso não levantam suspeita. É a palavra de uma criança contra a de um adulto respeitado pela comunidade. E isso não se aplica apenas a homens empobrecidos e sem cultura, mas a agressores com poder econômico e qualificação acadêmica.

Outro fator, justificando inclusive o baixo número de denúncias, provém do fato de que o maior número é de abuso sexual incestuoso. Isso dificulta muito esse núcleo familiar a se expor, assumindo para si a existência da violência internamente e mostrar para a sociedade que aquela família não é tão harmonicamente estruturada como a sociedade espera que seja. Essa atitude acaba provocando a culpabilização da criança e o descrédito em sua palavra, fazendo com que esse abuso sexual perdure por muitos anos.  Infelizmente, é muito difícil identificarmos um caso de abuso sexual incestuoso em que a violência tenha ocorrido uma única vez. Frequentemente quando ele é denunciado, ou quando as professoras, os médicos percebem e a família é obrigada a assumir que a violência está ocorrendo, muitos anos já se passaram.

Olhar Virtual: Existem medidas para solucionar essa situação?

Existem algumas formas de enfrentar este fenômeno. Uma delas é a qualificação dos profissionais que atendem e trabalham diretamente com essas crianças. Profissionais de Educação que convivem no dia-a-dia com crianças e adolescentes vão ter melhores condições de identificar alterações de comportamento que eu citei anteriormente. O professor, com qualificação para identificar uma possível violência e desencadear um processo de reconhecimento dessa situação, ancorado em outros profissionais e em outros olhares, exerce um papel fundamental.
Assim, estamos falando da necessidade de estruturação de uma rede de proteção social, que precisa envolver necessariamente profissionais da área da Educação, da Saúde, do Serviço Social, de Direito e do campo da Psicologia, para citar pelo menos cinco campos de intervenção profissional. Além da qualificação de profissionais já formados, pode-se pensar também na inclusão de disciplinas ainda no âmbito da graduação.

Olhar Virtual: O que dizem as Leis em relação a essa rede de proteção social?

Esse tipo de violência é ainda muito desconsiderado do ponto de vista da estruturação das políticas públicas. Apesar de existirem algumas propostas, como o Plano Nacional de Enfrentamento ao Abuso Sexual, não temos uma política efetiva, o que prejudica principalmente crianças empobrecidas, que não têm como recorrer a um apoio terapêutico em longo prazo, necessário para, junto a outros elementos, terem melhores condições de superar esse trauma.
Existe ainda uma tendência social a culpabilizar a mulher pela violência sofrida. Se isso já é perceptível no caso das adolescentes, em relação a mulheres adultas é claríssimo: aconteceu porque ela estava usando aquela roupa, naquele lugar, daquela forma. Essas caricaturas lançam sobre a mulher a culpa de um comportamento violento que se dá pela estrutura de nossa sociedade, com fortes traços autoritários, onde o homem tem uma representação em maior escala.

Um importante ponto de apoio na estruturação dessa rede de proteção social são os conselhos tutelares, através das notificações, e as delegacias, no caso de denúncias feitas por mulheres adultas. Nesse aspecto, faz-se ainda necessário uma alteração no Código Penal, pois o abuso sexual é ainda enquadrado como atentado violento ao pudor, que apresenta uma pena muito branda. A articulação de diferentes ações resulta em políticas públicas efetivas – como a criação de um número maior de abrigos, para os casos de mulheres adultas, para que possam efetivamente vivenciar um tempo de maturação e de enfrentamento do trauma sofrido; qualificação de profissionais, infra-estrutura (física e de recursos humanos) adequada para a realização de atendimentos e acompanhamento dos casos. Ao mesmo tempo em que seria necessária uma penalização maior dos próprios agressores, paralela ao tratamento psicológico.