Entrelinhas

Antropologia dos Objetos: coleções, museus e patrimônios

Julia Vieira

capa do livro

O ato de colecionar e suas influências na formação da personalidade humana é o foco principal do livro Antropologia dos Objetos: coleções, museus e patrimônios, do professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) José Reginaldo Santos Gonçalves.

Em entrevista ao Olhar Virtual, José Reginaldo revelou suas motivações para escrever esta obra e traz um novo olhar sobre os objetos corriqueiramente colecionados.

Olhar Virtual: Qual a abordagem específica do livro e quais os principais aspectos analisados?

Um tema recorrente atravessa os textos reunidos nesta obra: o papel que os objetos materiais, em geral e aqueles classificados como itens integrantes de coleções, museus e patrimônios, em especial. É o papel que os monumentos desempenham no processo de formação de diversas modalidades de autoconsciência, seja individual ou coletiva.

Nesse sentido, tais objetos não desempenham apenas a função de marcadores de nossas identidades individuais e coletivas, mas, na verdade, contribuem decisivamente para a sua constituição e percepção subjetiva.

Em sua presença incontornável e difusa, usados privada ou publicamente, colecionados e expostos em museus ou como patrimônios culturais no espaço das cidades, os objetos influenciam secretamente a vida de cada um de nós. Perceber e reconhecer esse fato pode trazer novas perspectivas sobre os processos pelos quais definimos, estabilizamos ou questionamos nossas memórias e identidades. Fazendo uso de uma frase do antropólogo norte-americano Roy Wagner, que, por sua vez, faz uso de um insight do poeta Rainer Maria Rilke, podemos dizer que, de certo modo, “os objetos nos inventam”.

Olhar Virtual: Como foi o processo de pesquisa e redação do livro?

Os textos reunidos neste livro resultam de um longo processo de pesquisa e reflexão que venho desenvolvendo sobre o tema “C oleções, museus e patrimônios”, iniciado há mais ou menos quinze anos, quando escrevi o livro A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural do Brasil, publicado pela Editora da UFRJ e pelo IPHAN, atualmente em segunda edição.

Originalmente palestras, conferências, aulas, comunicações em congressos, os textos que integram Antropologia dos objetos foram, em sua maioria, publicados em revistas especializadas e em livros, entre os anos de 1989 e 2005. Cada um dos artigos sofreu pequenas correções e alterações para sua publicação neste livro (seja nos títulos, seja em detalhes do seu conteúdo para evitar as repetições e esclarecer trechos obscuros), sem que este procedimento tenha modificado as linhas principais de argumentação.

Atualmente o trabalho de pesquisa desenvolvido sobre esse tema é realizado no Núcleo de Antropologia dos objetos/ NUCLAO, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ.

Olhar Virtual: Por que a escolha de escrever um livro sobre "Colecionamento"?

Colecionar é uma prática humana universal e pode ser considerada equivalente ao ato de classificar. Todo colecionamento é uma forma de classificação. E não podemos viver sem classificações. Não há vida social sem alguma forma de classificação. Por meio das classificações organizamos o espaço, o tempo, os grupos sociais, as pessoas, nossos amigos e inimigos; por meio delas se exercem diversas formas de poder.

Casas, mobílias, roupas, ornamentos corporais, jóias, armas, moedas, instrumentos de trabalho, instrumentos musicais, variadas espécies de alimentos e bebidas, meios de transporte, meios de comunicação, objetos sagrados, imagens materiais de divindades, substâncias mágicas, objetos cerimoniais, objetos de arte, monumentos, todo um vasto e heteróclito conjunto de objetos materiais circula significativamente em nossa vida social por intermédio das categorias culturais ou dos sistemas classificatórios dentro dos quais os situamos, separamos, dividimos e hierarquizamos.

Expostos cotidianamente a essa extensa e diversificada teia de objetos, sua relevância social e simbólica, assim como sua repercussão subjetiva em cada um de nós, termina por nos passar despercebida em razão mesmo da proximidade, do aspecto familiar e do caráter de obviedade que assume.

Olhar Virtual: Esta obra é direcionada a algum público específico?

Minha expectativa é que ele possa ser, para o público em geral, uma leitura prazerosa e útil, na medida em que chama atenção para um tema sobre o qual pouco refletimos: a função cotidiana dos objetos materiais na formação de nossa autoconsciência individual e coletiva.

Mas boa parte dos artigos foi produzida para uma audiência de museólogos e profissionais de patrimônio, com os quais tenho mantido, ao longo dos últimos anos, um diálogo constante e produtivo. Outra parte foi produzida para uma audiência composta pela comunidade de meus colegas antropólogos, sociólogos e historiadores.

Olhar Virtual: Se fosse preciso convencer alguém a ler seu livro, quais seriam seus argumentos?

É curioso que a cada revolução, a cada mudança de regime político, monumentos e outros objetos materiais costumem ser violentamente destruídos ou substituídos. Ainda residem na memória de cada um de nós as imagens da demolição do muro de Berlim e a posterior venda de seus fragmentos. Ou ainda a imagem de uma estátua de Sadam Hussein sendo derrubada em Bagdá. Guardamos cuidadosamente jóias, fotografias e outros objetos materiais que herdamos de nossos familiares. Os museus são instituições especializadas em guardar e preservar coleções de objetos associados a determinados períodos e personagens históricos, mas por que a obsessão por esses objetos?

Essa é uma questão que busco, de modos diversos, responder ao longo do livro. Mas um livro, a exemplo de qualquer objeto material, não existe se não por meio de nossas classificações e narrativas. Se os objetos “nos inventam”, por outro lado sua existência decorre em grande parte do modo como nós interagimos com eles. Nesse sentido, também um livro como este existe fundamentalmente na medida em que é lido, na medida em que repercute subjetivamente na vida de um ser humano.

Os livros, alguém já disse, têm seu destino. Uma vez publicados, uma vez no mundo, eles não pertencem mais ao autor. Posso apenas cultivar a expectativa que aqueles porventura leitores de algumas dessas páginas possam ter, de algum modo, sua atenção despertada para a presença discreta, humilde, misteriosa mas, ao mesmo tempo, poderosa e efetiva dos objetos materiais em nossa vida individual e coletiva.