Entrelinhas

Discutindo a violência de gênero

Cinthia Pascueto – AGN/ Praia Vermelha

capa do livro

A falta de materiais de pesquisa sobre a violência de gênero em suas diferentes formas de manifestação e, em contrapartida, sobre as formas de enfrentamento político-sociais levou Suely Almeida, professora da ESS/UFRJ e diretora do Núcleo de Estudos e Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH), a reunir diversos estudos de profissionais ligados à questão no livro Violência de gêneros e políticas públicas.

Em entrevista ao Olhar Virtual, Suely narra o processo de constituição da obra e discute alguns pontos de relevância no que diz respeito às formas de violência e às políticas de proteção aos direitos humanos.

Olhar Virtual: O livro apresenta um tema de discussão bem claro já no título Violência de gêneros e políticas públicas. Ainda assim, qual a proposta da obra e o que motivou a senhora a produzi-la?

O livro concebe a violência de gênero como uma violação dos direitos humanos. Apresenta um debate teórico-conceitual sobre violência de gênero; variadas modalidades de expressão desta forma de violência; respostas institucionais do legislativo, do judiciário, em termos de formulação e execução de programas sociais; e tendências do debate teórico sobre as principais categorias de análise utilizadas para investigação desse fenômeno. A principal motivação foi o fato de que eu não tenho conhecimento da existência de livros didáticos sobre o tema.

Olhar Virtual: Como foi o processo de elaboração do livro?

O livro resulta, em parte, do seminário “Violência de Gênero e Direitos Humanos”, organizado em conjunto pelo CFCH e a Escola de Serviço Social. Pedi alguns textos a participantes dos debates e outros a pessoas que não participaram. O critério utilizado foi o livro cobrir um amplo espectro temático, interessante a várias disciplinas, pesquisas, campos de estágio e extensão, além de profissionais que trabalham com programas sociais destinados ao enfrentamento da violência de gênero. O posfácio foi uma sugestão do Conselho Editorial que considerou importante indicar as principais tendências do debate teórico sobre gênero. O livro é dividido em duas partes. A primeira parte trata de violências múltiplas em contextos e tempos distintos. A segunda é intitulada Políticas públicas: desafios e perspectivas.

Olhar Virtual: Pode-se dizer que existem avanços significativos em políticas públicas de proteção à mulher e à criança no Brasil?

Para responder a esta questão tenho que me reportar a um marco temporal de 23 anos, iniciado com a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e da primeira delegacia especializada no atendimento à mulher, na cidade de São Paulo. Desde então, os serviços destinados à intervenção no fenômeno da violência de gênero vêm se estruturando basicamente em quatro eixos: as delegacias especializadas, centros de referência e núcleos de atendimento à mulher, casas-abrigo e serviços na área de saúde, articulados aos direitos reprodutivos. Está em processo de implantação a Lei Maria da Penha, que não banaliza a violência de gênero em suas expressões doméstica e familiar, como vinha ocorrendo historicamente neste país. Ao contrário, reconhece a sua gravidade. Trata-se de uma lei bastante abrangente, resultado de anos de lutas feministas. Como afirma Leila Linhares, da Organização Não-governamental Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), em seu texto, a lei define diretrizes de uma política de prevenção e de enfrentamento desta forma de violência, articulando ações governamentais em todas as esferas a ações não governamentais, definindo responsabilidades operacionais para o Poder Judiciário, o Ministério Público e Defensoria Pública, na perspectiva de integração com as áreas de saúde, assistência, segurança pública, habitação, trabalho e educação. Recentemente, foi criado o Observatório da Lei Maria da Penha, do qual o NEPP-DH da UFRJ participa como uma das entidades consorciadas. Em relação a programas de enfrentamento da violência de gênero destinados a crianças, só posso lamentar a falta de articulação com programas destinados a mulheres. Fica a impressão de que é apenas uma questão de geração e de que a criança não participa também de densas e contraditórias relações de gênero. Rosana Morgado, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, chama também a atenção para este problema (confira a opinião da especialista na editoria Ponto de Vista, edição 192 do Olhar Virtual) http://www.olharvirtual.ufrj.br.

Olhar Virtual: O Brasil é um país de marcantes diferenças culturais e desigualdades sociais. Isso exerce que tipo de influência no enfrentamento contra essa forma de violência? (Por exemplo, essa diferença pode impedir que a mulher tome a atitude de denunciar?)

Eu costumo dizer que a violência de gênero só se sustenta em um quadro de desigualdades sociais, que integram o conjunto das desigualdades estruturais e que se materializam no processo de produção e reprodução das relações sociais fundamentais: as de classe, de gênero e étnico-raciais. Penso que devemos incluir também as relações geracionais, pois embora de natureza diferente, situam o sujeito em seu tempo histórico. Assim, fica claro que, enquanto essas relações não se transformarem estruturalmente, o máximo que se pode esperar é a gestão competente do problema e não sua erradicação. Este quadro, que inclui as diferenças culturais, é determinante para que a mulher enfrente a violência de gênero, inclusive em termos de denúncia.

Olhar Virtual: A senhora apontaria algumas mudanças na política pública que poderiam ser aplicadas de modo a reduzir a violência de gênero?

Em primeiro lugar, é preciso construir, de fato, uma política na área. Este é o grande desafio. Hoje existem ações e programas fragmentados, com financiamentos e equipes descontínuos, com diferentes, e muitas vezes contraditórias, concepções de gênero e evidente necessidade de formação continuada, em uma perspectiva crítica. Muito embora reconheçam a necessidade de constituição de redes, os serviços não atuam de maneira integrada. Faltam dados oficiais, nacionais, de caráter global, fundamentais à formulação de políticas públicas. É preciso que se avance para políticas na perspectiva da intersetorialidade.

Olhar Virtual: Em seu livro, há a afirmação de que as lideranças religiosas têm um potencial expressivo na construção de estratégias de enfrentamento à violência doméstica e de gênero. De que forma essas entidades podem assumir esse papel?

Essa discussão aparece no texto de Maria das Dores Campos Machado, professora da ESS/UFRJ. A autora mostra o potencial de lideranças religiosas para mobilização das mulheres, criando espaços de sociabilidade e canalizando a sua motivação, para que busquem forças no sentido de enfrentar a grande situação de exclusão social em que vivem. Dessa forma, criam espaços para que as mulheres falem dos seus problemas e pensem em estratégias de enfrentamento dos mesmos. Na verdade, a autora não defende que as lideranças religiosas exerçam esse papel. Como pesquisadora, realizou seu estudo, analisou os dados obtidos e chegou a essas conclusões, dentre outras.

Olhar Virtual: Nos últimos anos, poderíamos afirmar que houve um avanço no enfrentamento a essa forma de violência? Por quê?

Não podemos desconhecer que os avanços nos planos legislativo, judiciário e executivo são tensionados cotidianamente pela grave situação de violação dos direitos humanos no Brasil. No entanto, há importantes perspectivas abertas. Devemos reconhecer os avanços existentes ao longo desses 23 anos, inclusive em relação à produção acadêmica. Para reforçar a crescente produção, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, órgão vinculado à Presidência da República, negociou, com êxito, com o CNPq a abertura de um edital de pesquisa voltado para a temática de gênero. Isso é muito bom porque mostra que o Executivo reconhece a necessidade de mais investimentos acadêmicos na área. Creio que, em que pesem os problemas apontados, temos um balanço positivo.