Olho no Olho

A guerra de um tiro só

Julia Vieira

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Apenas um tiro foi disparado depois que se iniciou, no dia 1° de março, uma “guerra fria” na América do Sul, com palavras e ofensas disparadas para todos os lados. O único tiro aconteceu no último dia sete, na fronteira da Colômbia com a Venezuela, quando um carro da polícia venezuelana atravessou, somente alguns metros, o limite de seu país. A polícia da Colômbia deu um tiro no pneu do carro para evitar que ele avançasse em território vizinho e para mostrar que em território colombiano os chavistas não têm vez.

Em Santo Domingo, enquanto o episódio do tiro se desenrolava na fronteira Colômbia–Venezuela, Álvaro Uribe, Rafael Correa e Hugo Chávez, presidentes pivôs da crise diplomática, trocavam apertos de mãos e promessas de nunca mais agredir um país irmão.

A crise entre Colômbia, Equador e Venezuela teve início quando o exército colombiano anunciou ter matado Raúl Reyes, segundo homem das Forças Revolucionárias da Colômbia (Farc). Reyes foi assassinado nas proximidades de Teteyi, no departamento de Putumayo, fronteira com o Equador.

Após a incursão colombiana em território equatoriano, Hugo Chávez, presidente da Venezuela, ordenou a saída de seus funcionários da embaixada colombiana, alegando à imprensa não estar em busca de guerra, mas que “não permitirá jamais que o império – EUA – nem o seu cachorro ataquem países sul-americanos”.

Com os funcionários da embaixada venezuelana fora da Colômbia, começou a troca de farpas e se instaurou uma situação de crise. Os embaixadores equatorianos também se retiraram de Bogotá, além de Carlos Holguín, embaixador colombiano em Quito ter sido imediatamente expulso.

Colombianos criticam as atitudes de Chávez, que caracteriza o governo de Uribe como narco-governo. Equatorianos seguem a linha chavista e acusam o presidente da Colômbia de participação na máfia. Onde tudo isso vai parar? Apesar de a paz ter sido selada, a situação ainda é delicada e os ânimos sul-americanos estão exaltados. Quantos tiros mais terão de ser disparados para que a paz volte, efetivamente, à América do Sul?

Para falar sobre a possibilidade de esta crise diplomática ter como desfecho um conflito armado, o Olhar Virtual conversou com o diretor do Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ, Franklin Trein e com Iná Elias de Castro, professora de Geografia Política do Instituto de Geografia (IGEO/UFRJ).

Iná Elias de Castro
Professora de Geografia Política

No campo das relações internacionais existe um jogo de probabilidades. Nenhuma probabilidade pode ser completamente descartada nem aceita. Nesta situação em que se encontra a crise na América do Sul, é possível que uma guerra entre Venezuela, Equador e Colômbia aconteça, mas é uma confrontação improvável.

A retórica da guerra é importante para aumentar a visibilidade das autoridades envolvidas, mas gera um custo concreto para a sociedade. Um gasto que não fica apenas no campo econômico e é tocante também à questão das vidas, de militares e civis, perdidas nestes conflitos. Quando o choque se dá em território nacional existe ainda a possibilidade de que cidades sejam bombardeadas e destruídas. Antes de entrar em guerra os dirigentes têm que pesar a relação custo-benefício para seus países.

Ao recapitular a história das guerras, conclui-se que um conflito armado pode surgir devido a fatores realmente importantes ou, ainda, a um ator principal, responsável pelo desencadeamento do confronto. Na América Latina, há o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, personagem criador de um grau de imponderabilidade que ultrapassa a negociação diplomática e todos os termos que as chancelarias estipulam em relação aos conflitos.

Embora as guerras sejam vistas como uma ação de determinado estado para fora, elas acontecem devido a questões internas. Na atual conjuntura sul-americana, Venezuela, Colômbia e Equador passam por sérios problemas internos.

A Venezuela passa por uma situação delicada. O presidente realizou um referendo e perdeu; o apoio que recebia das massas está se dissipando; a sua popularidade diminuindo; a inflação é crescente, além de haver problemas de abastecimento em algumas áreas. Frente a estes problemas, Hugo Chávez precisa criar um inimigo objetivo externo para conseguir resolver suas questões internas.

Rafael Correa, presidente do Equador, também está sendo beneficiado pela visibilidade da crise na América Latina. É um presidente recém-eleito, renegado por considerável parcela da população equatoriana e precisa se destacar e marcar seu governo.

No caso da Colômbia, o presidente Álvaro Uribe está jogando com a possibilidade de um terceiro mandato e quer ter sua imagem vinculada a uma política musculosa e de imposição internacional. É fundamental lembrar que existe uma aliança entre a Colômbia e os EUA, inimigo objetivo tanto do Equador como da Venezuela.

O risco de uma confrontação entre países latino-americanos reside no fato de não se saber ao certo o que um governante como Hugo Chávez, por exemplo, é capaz de fazer. Ele pode criar um conflito na fronteira com a Colômbia ou pode fornecer material bélico para o Equador. Tudo é possível, já que Chávez está jogando com uma idéia de guerra extraterritorial, pensando em apenas aferir os ganhos, não os custos. É importante salientar que as guerras são marcadas por momentos decisivos, concretizados por pessoas que defendem até o fim seus interesses e ideais.

O Brasil é o maior país sul-americano e tem uma chancelaria tradicionalmente mediadora e pacifista. A presença brasileira é importante para mediar as relações entre estes países e acalmar os ânimos em relação a um eventual conflito.

Por outro lado, no discurso de Chávez e na nova esquerda boliviana fica clara a tentativa de descredenciar o papel mediador do Brasil e colocá-lo como uma força imperialista no continente, criando uma situação delicada.

A preocupação geopolítica com a Amazônia é uma questão primordial para os países da América Latina. Para o Brasil, não é interessante que haja qualquer conflito nas fronteiras da Amazônia, já que estes limites, apesar de demarcados, têm áreas imensas sem nenhuma forma de controle. É possível que existam elementos das Farc se escondendo na Amazônia brasileira, tal qual estão presentes em porções estrangeiras da floresta, como no Equador, por exemplo.

A crise entre países sul-americanos pode gerar desdobramentos variados para o Brasil. O governo tem que estar atento, seja com o Itamaraty, seja com a Polícia Federal guardando a fronteira. Uma relação mais permissiva do Brasil em relação às Farc pode tornar o país um espaço de apoio, como o ocorrido no Equador, complicando a rela&ccedsil;ão com os EUA ou com a Colômbia, que pode vir a fazer com o Brasil o que fez no Equador.

Franklin Trein
Diretor do Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ

Apesar da crise diplomática que se configurou na última semana entre Venezuela, Equador e Colômbia, não acredito na possibilidade de um conflito armado entre os três principais envolvidos na crise. Minha descrença se deve a um motivo simples: não é interessante para estes países entrar em um conflito. Nem no plano interno nem no âmbito internacional. Os três governantes - Álvaro Uribe, Rafael Correa e Hugo Chávez - têm a perder com a ocorrência de um conflito armado.

Devido à conjuntura atual, é provável que sigam ocorrendo tensões que envolvam a Colômbia e seus vizinhos, provocadas por trocas de acusações de ambas as partes.

A situação é tênue e o presidente da Venezuela sempre estará buscando algum proveito para o seu governo, especialmente um poder interno cada vez mais amplo.  Além disso, Hugo Chávez tem um projeto de caráter bolivariano“ de assumir a liderança de uma aliança entre os países sul-americanos. Faltam a Chávez, contudo, condições de estadista para se projetar internacionalmente no plano  pretendido. O viés militar de sua personalidade é muito forte, o que se desloca de nosso tempo histórico.

Internamente, Chávez poderá ter êxito, na medida em que atenda aos anseios da maior parte da sociedade venezuelana, sistematicamente excluída dos benefícios da exploração das riquezas do solo do seu país. A Venezuela é um país rico de pobres e miseráveis, o que aproxima um pouco sua realidade da brasileira. Externamente, o presidente será cada vez mais criticado.

A crise diplomática está passando por um momento de controle, mas se evoluísse para um conflito armado seria muito ruim para todos os países da América do Sul, não somente nos planos comercial e econômico como também no plano político.

Ao Brasil só interessa a integração dos países da América do Sul ou, talvez mais corretamente, a criação de um amplo e forte mercado interno na região sul-americana, com paz e prosperidade. Nossas características, em todos os sentidos, nos dão a condição de uma "natural" liderança, se não formos presunçosos, arrogantes e se tivermos humildade e generosidade nas relações para com nossos vizinhos.

Para um líder regional nunca será positivo administrar conflitos. Será sempre mais conveniente, quando possível, promover o entendimento e contribuir para a prosperidade de todos. Até porque a comunidade internacional cobra, cada vez mais, massa crítica em todos os planos - econômico, político e social - para que as posições e os interesses possam se afirmar e ser respeitados pelos demais atores das Relações Internacionais. O mundo não pertence mais às nações. O mundo agora é das regiões.