Entrelinhas

O Rio discriminado

Sofia Moutinho - AGN/CT

capa do livro

A velha querela entre paulistas e cariocas é mais uma vez posta em foco; desta vez, a disputa sai do campo da mera convenção social para a esfera econômica e política. O responsável por essa proeza é Jorge Natal no livro O Rio discriminado? (pelo Governo Federal), publicado pela FAPERJ e Armazém das Letras, em 2007. O autor, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e coordenador do Laboratório Estado, Economia e Território (Leste, IPPUR), defende a tese de que o Rio de Janeiro estaria sendo deixado de lado em prol dos interesses políticos e econômicos de São Paulo que domina o governo federal.

Em entrevista para o Olhar Virtual, o professor fala sobre seu livro e tira algumas dúvidas sobre essa temática.

Olhar Virtual: Em linhas gerais, o que seu livro aborda? Por que a escolha deste título?

Este livro examina uma questão difundida desde a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília, a saber, a de que os “interesses do Rio” seriam sistematicamente discriminados pelo governo federal; a pesquisa tem como recorte especialmente o governo do senhor Anthony Garotinho. Daí o título.

Olhar Virtual: Como surgiu a idéia?

A idéia do livro seguiu a um triplo desiderato: o de dar seguimento aos estudos acerca da “economia, sociedade e território fluminense”, nos últimos dez anos, no Laboratório Estado, Economia e Território (Leste) do IPPUR; o de examinar uma questão tão recorrente na sociedade fluminense, particularmente na carioca, desde o momento antes apontado; e, por fim, por uma suspeita, de que em alguma medida a tese da discriminação do Rio pelo governo federal deveria ter algum fundo de verdade, bem como devido ao fato dessa possível discriminação ter se agravado a partir da ida dos “paulistas” ao poder (FHC I e II, e Lula I). 

Olhar Virtual: O sr. afirma que os interesses do Rio de Janeiro vêm sofrendo discriminação. Como se dá esse processo e desde quando?

Aparentemente seria desde a transferência da capital para Brasília. Não dá para negar as enormes perdas em termos de injeção de recursos deste então e, também, não dá para negar, apesar de haver um monumental silêncio sobre isso, que o Estado brasileiro, apesar de estar aqui (no Rio), nunca teve verdadeiramente um projeto para o Rio. Por quê? Porque o Rio de Janeiro nunca foi de fato o carro-chefe da economia brasileira, e o Estado sempre atuou em prol da acumulação de capital, verificada em todo o século passado, no Brasil, principalmente em São Paulo. Não obstante, neste último livro, nós procuramos mostrar que a discriminação se mostrou muito aguda nos anos 90. E isso foi possível de demonstrar, sem muitas dificuldades, quando examinamos os dados fiscais relativos envolvendo o Rio e a União de um lado, mas também considerando as destinações para São Paulo e Minas Gerais (aqui é bom lembrar a aliança do Aécio Neves na Câmara Federal).

Olhar Virtual: Qual a conexão entre este livro e os seus dois anteriores,Conjuntura fluminense recente (1998 - 2004) - memórias selecionadas, publicado em 2004 e O estado do Rio de Janeiro pós 95 - Dinâmica econômica, rede urbana e questão social, publicado em 2005?

São todos sobre o Rio. Em todos eles, para além da análise histórica ou da conjuntura fluminense desenvolvida em tais trabalhos, algumas linhas mestras sempre foram perseguidas: I) os estudos sobre o Rio de Janeiro eram e são majoritariamente “recortados” ao âmbito de município-sede ou, quando muito, atinentes à sua região metropolitana. Sempre entendi que havia aí uma lacuna, havia outros espaços a considerar, e ainda mais a partir de meados dos anos 1990, quando uma série mudanças (muitas delas até profundas) aconteceram em terras fluminenses. Havia, enfim, uma interescalaridade analítica pouco valorada pelos intelectuais fluminenses, talvez por serem em sua maioria cariocas. Por isso, todos esses livros tiveram como recorte geográfico não algum dos seus subespaços, mas sim o estado como um todo (conquanto análises sobre alguns municípios também tenham, vez por outra, sido neles efetuadas); II) uma outra dimensão de permanência nessa minha produção intelectual diz respeito ao fato do Rio de Janeiro, em especial a sua população carioca ainda preservar em seus corações e mentes alguns valores herdados capazes de contribuir para a rediscussão de um projeto de país, no qual não apenas o mercado seja considerado e valorado. Minha torcida (mais que uma hipótese) talvez seja para que o antigo sentimento de identidade nacional, assim como a nossa também antiga auto-estima (no mais das vezes, exagerada), ainda tenha sobrevivido em algum cantinho da “alma” carioca e que nos permita, dado que esses valores são tão raros no país, “somar” para a construção de um país mais nacional, menos aculturado e subserviente, sem aquele jeito de ser de cachorro vira-lata de que nos falava Nelson Rodrigues. E, por fim, em todos esses livros uma questão que desde longa data me aflige é que São Paulo, essa formação social tão ímpar e importante para a vida nacional, na sua extrema complexidade e na sua enorme diversidade, sempre teria enorme dificuldade em pensar o Brasil. Coisa que o Rio de Janeiro sempre lidou com mais facilidade, certamente por termos sido capital imperial e da República por quase 200 anos. Não obstante, nesse mesmo processo reflexivo, enquanto fortalecemos a convicção que São Paulo é uma esfinge a ser decifrada, para o bem deles e do Brasil, firmamos o juízo de que o Rio de Janeiro, apesar do “oba-oba” devido também ao fato de ter sido capital, desde pelo menos a entrada do século XX nunca se deu conta de que parte dos seus muitos problemas poderia ser explicada como resultante do desenvolvimento “desigual e combinado” do capitalismo, no país, que o leva a se inscrever, ainda que contra a sua vontade, como umas expressões da questão regional brasileira. Tomar consciência desse fato já ajudaria bastante a examinarmos o Rio como uma totalidade, um “ser” em movimento que seria pouco inteligível se fosse analisado em escala, apenas referido a si mesmo ou ao seu entorno mais imediato.

Olhar Virtual: Em seu livro o presidente Lula é considerado um paulista, mesmo tendo nascido no Nordeste. Por quê?

Eu diria que, no limite, o Lula é tão nordestino quanto o FHC é carioca. Nascer em um dado lugar não nos faz, definitivamente, expressar a nossa vida como o fazem aqueles que lá vivem. Sendo assim, é natural incorporarmos ao nosso modo de ser, de ver o mundo, alguma maneira, valores ou costumes do lugar no qual vivemos a maior parte da nossa vida. Principalmente, se para esse lugar nos dirigimos em uma fase de formação, de aprendizado. Para não dizer que estou sozinho invoco aqui o brilhante mestre Francisco de Oliveira. Minha esperança é a de que a própria crise do PT, com redução da presença dos muitos e pesados paulistas no centro do governo, iniba o anterior e paroquial olhar. Veja o PSDB: é mais um outro. Apesar de alguns nomes nacionais, continua e continuará sendo marcadamente paulista. Claro, esses partidos são nacionais, mas não dá para negar que os seus berços os definem profundamente. Eu, particularmente, gostaria que o Lula fosse pelo menos um pouco mais pernambucano. Afinal, nem o Corinthians paulista nem a Vai-Vai são tão nacionais assim!

Olhar Virtual: Então o sr. considera paulista o atual governo?

Neste segundo mandato bem menos. Entendo que a crise do primeiro mandato acabou contribuindo para a diminuição do paroquialismo anterior, para a miopia de achar que São Paulo era o Brasil. E digo isso fazendo apenas uma constatação: veja qual era a origem, por estado, do núcleo do poder e das suas cercanias. Embora isso seja fato, nós, cariocas, não podemos nos orgulhar muito, posto que nos governos anteriores, embora o núcleo duro fosse de São Paulo, a economia estava nas mãos de economistas do Rio (ainda que vinculados aos interesses da banca).

Olhar Virtual: Qual é a importância desse tema para a sociedade?

Eu entendo que a importância desse tema para a sociedade brasileira, e não apenas para a fluminense ou, mais restritamente para a carioca, é enorme. É enorme porque coloca na ordem do dia algumas questões. Uma, em sendo verdadeira a tese de que o Rio teria sido mesmo discriminado, ela confirmaria a capacidade que um governo tem de discriminar uma unidade federativa e, por consequência, uma população, por conta de estar mais voltada para a sua maior base social de apoio (sediada em SP) ou pelo fato dos governantes de um dado estado serem adversários  políticos.  Outra: a necessária rediscussão do pacto federativo nacional. Ainda mais se tivermos em conta que o estado de São Paulo, desde o final do Século XIX, comanda os destinos econômicos do país e, a partir de FHC I, logrou, em boa medida, equilibrar, problematicamente, seu antigo predomínio com aquilo que Gramsci denominava de hegemonia política, cultural e ideológica.

Olhar Virtual: Como o sr. vê os territórios fluminenses em termos econômicos e sociais hoje?

Vejo com alguma esperança. Não com otimismo, porque não posso ser tolo nesta etapa da minha vida. Mas, também, por razões diversas, não tenho porque ser pessimista. Parafraseando Ariano Suassuna, sou um “realista esperançoso”. O mesmo vale para o Brasil. No caso do estado do Rio de Janeiro as dificuldades são enormes, mas, ao mesmo tempo, estão acontecendo fatos de extrema importância, processos com muitas potencialidades em prol da mudança social estão em curso. O estreito alinhamento do governo do estado com o federal, depois de tantos anos, sem dúvida, é muito positivo. Algumas iniciativas de base local vêm sendo desenvolvidas – algumas com êxito. Uma série de projetos de desenvolvimento também vem sendo tocada com o apoio de atores sociais os mais variados e, em muitos casos, contando com o apoio dos governos estadual e federal. Aproveito aqui para destacar as três principais conclusões do meu penúltimo livro sobre o Rio: 1) a economia fluminense, em termos agregados, apresentou um melhor desempenho a partir de meados da década passada, e esse fato se reveste de extraordinária importância, notadamente se comparado esse mesmo desempenho com os quinze anos que precederam essa data; 2) houve desde ali, meados dos anos 1990, o “desenho” de uma nova geografia econômica que se de um lado reduziu a megacefalia do município-sede, de outro não apenas aumentou a presença dos interioranos na vida do estado, como ampliou a sua integração sócio-espacial. Pela primeira vez, penso que dá para falar na existência de uma relativa e robusta rede urbana fluminense. Por conseguinte, cabe agora, mais do que nunca, a adoção de ações públicas de modo a resgatarmos um pouco do “atraso” que sempre marcou a nossa formação social.

Olhar Virtual: O sr. tem algum outro projeto de livro em mente?

Neste momento estamos desenvolvendo uma pesquisa sobre as experiências dos pólos de desenvolvimento espalhados pelo território fluminense. Quanto ao próximo, estamos organizando as análises acerca da conjuntura fluminense que divulgamos em nossa página da internet (www.ippur.ufrj.br). Possivelmente este deverá ser o próximo. Ele deve tratar da dinâmica econômica, da infra-estrutura e do mundo do trabalho fluminenses de 2004 até os dias de hoje. Mas esse trabalho, conquanto importante, não será de grande “fôlego” reflexivo. Será mais um registro. Será ainda, antes que me esqueça, uma homenagem aos pesquisadores mais jovens que trabalham comigo. Quanto à próxima pesquisa, ela ainda está em gestação…