De Olho na Mídia

Visão suburbana

Camilla Muniz

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Neste domingo, a população carioca vai decidir se será Eduardo Paes (PMDB) ou Fernando Gabeira (PV) o novo prefeito do Rio de Janeiro. Um dos grandes desafios a serem enfrentados pelo próximo governo — entre tantos outros problemas da cidade — é a solução para o lixo urbano.

Em meio aos debates sobre a questão, está o polêmico lixão de Paciência. Em 2003, a Prefeitura do Rio abriu licitação pública para construir o aterro sanitário no bairro da Zona Oeste, mas não obteve licença da Secretaria Estadual do Meio Ambiente para realizar a obra. Apesar disso, o início dos trabalhos foi autorizado por César Maia, quando o atual prefeito ainda exercia seu primeiro mandato.

No mês de outubro, o lixão de Paciência voltou a ganhar destaque na mídia. Logo nos primeiros dias de campanha para o segundo turno, jornalistas flagraram uma declaração de Gabeira — que conversava ao telefone com um interlocutor desconhecido — na qual o candidato afirmava que Lucinha, vereadora mais votada no município, age como “analfabeta política”, está de “salto alto” e tem “visão suburbana” sobre a construção do polêmico aterro sanitário. A notícia repercutiu intensamente na imprensa, principalmente pela alusão feita ao subúrbio por Gabeira, acusado de discriminar as áreas mais afastadas do Centro e da Zona Sul do Rio.

Alberto Oliva, filósofo e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), acredita que a atitude do candidato verde não tenha sido um manifesto preconceituoso. Para ele, o emprego da expressão “visão suburbana” resultou, provavelmente, mais da ausência de afastamento emocional na formulação de um conceito do que da intenção em menosprezar o subúrbio.

— Para formarmos conceitos rigorosos sobre o que quer que seja, é necessário distanciamento crítico. O wishful thinking pode nos levar a desconsiderar o ser próprio das coisas e das pessoas. Não havendo empenho para domesticar ou domar nossa arraigada tendência a emitir juízos apressados, a generalizar sem fundamento e a desqualificar o outro como “estranho” ou inferior, jamais chegamos aos conceitos. Ocorre que o ser humano não é uma máquina politicamente correta. Sua mente está o tempo todo misturando razões, emoções, paixões e interesses. A predominância desses sentimentos obnubila a mente, turva e até cega o entendimento. Por isso, não creio tenha pretendido o candidato Gabeira ofender os moradores do subúrbio associando-os à mentalidade retrógrada. É provável que tenha se referido de forma desairosa à proposta da vereadora Lucinha como forma emocionada de rejeitá-la enfaticamente. Todos nós, sem exceção, quando xingamos, imprecamos ou damos opinião estereotipada, estamos reagindo emocionalmente a alguma coisa que nos desagrada profundamente. As pessoas que pretendem encarnar à perfeição o politicamente correto são indiferentes ou são hipócritas. Às vezes, usam o jaquetão do politicamente correto para despejar seu desamor e seus preconceitos contra os que nem sempre são politicamente corretos. A catarse da linguagem é humana, demasiadamente humana. O inaceitável são ataques públicos, e principalmente ações e medidas, contra suburbanos, minorias e estigmatizados. O preconceito só deixará de existir se um dia a razão deixar de ser escrava das emoções e paixões. Mas, se isso vier a acontecer, morreremos todos de tédio — opina Oliva.

Como a declaração foi ouvida por repórteres que seguiam Gabeira durante a campanha eleitoral, o professor destaca que é importante considerar que há a possibilidade desse fragmento de conversa ter sido retirado de seu contexto próprio de significação, o que constitui, segundo ele, “uma injustificável e ameaçadora invasão de privacidade”. “Os inimigos das liberdades individuais sustentam absurdos do tipo ‘quem não deve não teme’. É preciso dar a todos o direito de desabafar, de ter relações íntimas protegidas. O que deve ser condenado é a ação, às claras ou à sorrelfa, que agrida direitos e dignidades”, ressalta.

Oliva acredita que a cautela é um elemento imprescindível na veiculação de notícias como esta para evitar a criação de estereótipos. “Quando a imprensa explora à saciedade um escorregão verbal, pode estar tentando criar um fato de um não-fato. A exteriorização na imprensa de formas pasteurizadas de pensamento e julgamento são tão preconceituosas quanto a incontinência verbal”, analisa. Além disso, o professor espera que a grande destaque dado ao caso não tenha sido utilizado pela mídia como um artifício para estimular a eleição de Eduardo Paes, nem para lesar a imagem de Gabeira. “Se for isso, é uma tentativa de combater uma descortesia verbal, um lapsus linguae emotivamente provocado, com um posicionamento ideológico que em nada é menos preconceituoso. A responsabilidade da imprensa não é só a de veicular com um mínimo de fidedignidade o que ocorre e de emitir opiniões bem fundamentadas, mas também a de evitar jogar biografias na lama por picuinha ideológica. O poder de causar danos é muito maior que o de repará-los em razão de, na mídia, nem sempre se mostrar claro para quem procura se informar o que é fato e o que é (re)construção discursiva do fato”, afirma.

Em relação aos efeitos que a expressão “visão suburbana” pode gerar nas urnas no próximo domingo, o filósofo diz ser difícil prever e julgar o impacto das derrapadas verbais dos candidatos sobre como as pessoas votam. “Só não se pode esquecer que o bairrismo é uma das formas mais arcaicas de mexer com o coração das pessoas. No mínimo, é grande o risco de a maioria dos indecisos deixar de votar no candidato ora caricaturado como o ‘detrator do subúrbio’”, observa. Lucinha recebeu 68.799 votos no último dia 5 de outubro e tem na Zona Oeste, onde se localiza Paciência, seu reduto eleitoral. Em contrapartida, Gabeira teve nesta região e na Zona da Leopoldina seu pior desempenho. Apesar da polêmica, Oliva acredita que a representação do subúrbio e os moradores da região não serão prejudicados.

— Nasci e fui criado no subúrbio do Rocha, cenário de brincadeiras e confraternizações hoje sumidas do mapa. Lá conheci pessoas que viriam a se destacar. Havia lá grupos de jovens estudiosos. O cineasta e escritor Arnaldo Jabor por lá viveu. Millôr, por exemplo, é do Méier. E poderiam ter centenas de relatos sobre o que havia de bom no subúrbio dos anos 50 aos 80. Só que por estar a Zona Sul mais “antenada” com os movimentos de mudança cultural e comportamental existentes nos EUA e Europa, consolidou-se a visão do subúrbio parado no tempo, preso a tradições imobilistas. Em parte isso é verdade. Felizmente, a inteligência inovadora não se distribui por renda ou localidade. Do contrário, algumas de nossas maiores cabeças pensantes não teriam brotado em rincões pobres do Nordeste — finaliza o professor.