Entrelinhas

A luz do leste

Rodrigo Ricardo

“Cada livro contém uma chave”, avisa Marylena Barreiras Salazar, lembrando-se das palavras de um anônimo na fila do banco. Durante a entrevista, a professora do Instituto de Química (IQ) e mestre em Educação pela UFRJ não guarda senhas ou hesita em relatar os caminhos que percorre. Numa travessia das salas de aula à literatura, hoje ela colhe inspiração em cidades (Petrópolis e Florianópolis) e autores, como o psicanalista Wilhelm Reich e o físico Amit Goswami, para escrever suas crônicas. Apaixonada pela universidade, Marylena recorda que, desde os anos 1970, a interdisciplinaridade sempre esteve entre seus conceitos pedagógicos e aponta que ciência, arte e religião pertencem a mesma unidade, “todas, criações do ser humano”. De natureza experimental, o primeiro livro nasce do registro da vida noturna de um bistrô (Volutas e atas do Santo Domingo, 1999). Já a última publicação, Luz do Leste – Contos de Cabalá (2007, editora Nova Razão Cultural), surge após a vivência de dois anos numa sinagoga, onde, além da publicação, também descobriria o mundo místico do judaísmo.

Olhar Virtual: Quando a senhora começou a escrever?

Meu pai, um sábio engenheiro baiano que veio ao Rio para construir a Rodovia Washington Luís e acabou se casando com a minha mãe em Petrópolis, sempre aconselhava a me preparar para outra profissão. À medida que fui parando de dar aulas, comecei, naturalmente, a escrever.

Olhar Virtual: Por que a crônica?

O texto literário, às vezes, nos leva por caminhos que não esperamos. A escolha da crônica trata-se de um encontro. Acho que nem consigo escrever outro gênero. Na crônica, sinto-me à vontade para refletir sobre um fato cotidiano ou acerca do pensamento de outros autores. Os meus textos e livros, depois de prontos, realmente são como filhos que não me pertencem mais e saem mundo afora. Eles serão lidos numa relação que a gente nem imagina, numa espécie de reação química. Como disse um homem no banco: “O livro é uma chave que abre uma porta para vários caminhos.”

Olhar Virtual: Quais são os autores que mais a influenciaram?

São muitos, mas no momento estou encantada pelo austríaco Wilhelm Reich, incompreendido tanto pela esquerda quanto pela direita. Ele foi um psicanalista que prosseguiu com as ideias de Freud, reivindicando a função da sexualidade, não a mera realização do coito, mas a fusão com o outro, uma vivência plena do amor, como fator indispensável para a satisfação emocional. Também me impactou a leitura de Amit Goswami. O autor, filho de um guru indiano, escreveu Física da Alma, tentando provar a existência científica de Deus. Na verdade, tudo pertence a uma grande unidade: arte, ciência e religião, todas grandes criações do ser humano.

Olhar virtual: Como se desenvolveu o processo de criação do livro Volutas e atas do Santo Domingo?

Por um tempo morei na Lagoa da Conceição, em Florianópolis (SC). Perto da minha casa havia um bistrô que passei a frequentar, registrando as passagens dos habitantes da noite por aquele estabelecimento. No passado, o jornalista Antonio Maria também escreveu sobre a noite carioca, período que acabou estigmatizado como o momento das forças malignas, talvez porque ela seja misteriosa; porém, acredito que a noite seja apenas diferente do dia e inclusive com mais solidariedade entre as pessoas.

Olhar Virtual: A senhora também escreveu sobre o dia a dia de uma sinagoga, em Laranjeiras. Como foi esta experiência?

Basicamente sou uma cientista, e não buscava nenhum caminho espiritual quando decidi escrever Luz do Leste – Contos de Cabalá (2007, editora Nova Razão Cultural), resultado de dois anos de vivência nesta sinagoga, onde aprendi o hebraico e a Cabala. Na verdade, a sinagoga representa a metáfora de uma travessia no deserto, experiência individual e fora do cotidiano, que ninguém podem fazer por você. Há dificuldades, mas, assumido o desafio de atravessá-lo (o deserto), é possível encontrar um caminho. Observe que esse deserto também se apresenta em outros ambientes. A sala de aula, por exemplo, trata-se de um espaço coletivo; entretanto, a aprendizagem cabe a cada aluno, que fará interpretações sobre os conteúdos apresentados.

Olhar Virtual: Como a senhora define a sua relação com a universidade?

A UFRJ é uma paixão e jamais consegui sair daqui. Mesmo aposentada continuo a participar da vida acadêmica, através de eventos ou contribuindo com textos para a Associação de Docentes da UFRJ (ADUFRJ) e o Sindicato (SINTUFRJ). Acredito que a transformação do Brasil passa obrigatoriamente pela Educação e, consequentemente, pelas universidades públicas. Como professora, divido o meu trabalho em duas partes. A primeira, quando percebi que dava aulas de modo estanque, igual ao meu antigo mestre Athos da Silveira Ramos (hoje nome de rua no CT). Então, resolvi fazer o mestrado em Educação, o que foi uma revolução para mim, pois passei a lecionar de forma interdisciplinar e abrangente. Como pesquisadora, concomitantemente elaborei um projeto para, a partir de terras da Amazônia, buscar microrganismos que produzissem antibióticos. Com essas mesmas amostras de solo, descobrimos bacilos termófilos, resistentes a altas temperaturas, que foram enviados à Universidade Federal de Viçosa para o desenvolvimento de produtos lácteos (ricota).