Ponto de Vista

Casa de denúncias

Aline Durães


Nas últimas semanas, o povo brasileiro assistiu a alguns episódios lamentáveis no Senado Federal: denúncias de corrupção, favorecimento, brigas e trocas de acusações entre senadores, impunidade.  A alta Câmara do Congresso passa por uma de suas piores crises desde a redemocratização do país, em 1984.

O estopim da recente crise ocorreu em junho deste ano, quando a grande imprensa noticiou a edição de atos secretos no Senado. Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo, cerca de 300 pessoas foram nomeadas ou exoneradas da Casa através de boletins não divulgados. Entre elas, constavam parentes e amigos de senadores, como foi o caso de João Fernando, neto de José Sarney, presidente do Senado. Logo depois, veio a público a informação de que um ato secreto permitiu o pagamento de horas extras a mais de 800 funcionários do Senado.

Somadas a essas, os parlamentares ainda foram alvo de denúncias de pagamentos acima do teto constitucional, desvios irregulares de funções, sonegação fiscal e até maus-tratos a funcionários. Os atos secretos foram suspensos, mas nenhum senador recebeu punição. Pelo contrário: no último dia 7 de agosto, o Conselho de Ética do Senado arquivou as sete últimas ações que restavam contra José Sarney.

Alheio aos acontecimentos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a declarar que a crise no Senado não era problema seu. A oposição também não se mostra muito ativa diante do episódio. E o povo permanece inerte diante da deterioração de uma das mais importantes instituições democráticas do país.

Para avaliar o atual momento político e refletir sobre as consequências das denúncias contra os senadores, o Olhar Virtual conversou com Charles Pessanha, cientista político do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ. Pessanha avalia que, “independentemente da crise, o Senado Federal é uma instituição que precisa ser repensada”.

Olhar Virtual: Como o senhor avalia os recentes escândalos ocorridos no Senado?

É claro que não dá para subestimar as irregularidades ocorridas no Senado Federal, como o uso irregular de bilhetes aéreos, funcionários pagos pelo erário e residindo no exterior e, principalmente, os atos administrativos secretos. A publicidade e a transparência dos atos públicos são conquistas do moderno estado democrático e remontam à Revolução Francesa. Indesculpável.

Olhar Virtual: Em que medida episódios como os atos secretos de Sarney e as brigas entre senadores constituem entraves à democracia brasileira? O exercício da democracia é mesmo tortuoso ou a democracia brasileira já demonstrou ser falha?

Há, efetivamente, um deslocamento de alguns representantes da classe política do restante do país, mas isso não representa entrave ao processo democrático. A democracia brasileira vai bem, obrigado. As instituições de 1988 vão adquirir a maioridade, 21 anos, daqui a três meses e têm se mostrado suficientemente fortes e sedimentadas para resolver todas as crises ocorridas no período. E não foram poucas: um presidente eleito foi impedido de governar, sob a acusação de irregularidades, dentro das normas constitucionais. Houve um verdadeiro teste de carga das instituições nessas duas décadas. A injustiça e o abuso do poder existem em qualquer sistema político. Depois vem a correção pelos órgãos competentes ou pela opinião pública. A literatura sobre controle fala da “accountability de reputação”, que visa informar ao eleitor o representante que não está agindo de acordo com a boa conduta.

Olhar Virtual: Qual é a sua opinião sobre o silêncio do presidente Lula diante da crise no Senado? O senhor acredita que, como presidente, Lula deveria participar mais do que acontece na Casa?

Tanto o presidente Lula, chefe do Poder Executivo, quanto o presidente do Poder Judiciário, ministro Gilmar Mendes, devem guardar uma distância cautelosa em nome da autonomia dos poderes. No interior do Poder Legislativo, o deputado Michel Temer, presidente da Câmara dos Deputados, também está guardando distância. Todavia, no Presidencialismo, o presidente da República ocupa dois cargos simultaneamente: chefe de governo e chefe de Estado. Nessa condição, ele deve sugerir moderação no conflito político e tentar apaziguar o conflito entre as partes.

Olhar Virtual: Os recentes acontecimentos no Senado levam muitas pessoas a pensarem perigosamente que “outros tempos” eram melhores, sugerindo que o Senado seja fechado. Em declaração publicada no jornal O Globo, a atriz Marieta Severo afirmou que prefere “um Senado cafajeste e corrupto que um Congresso fechado”, lembrando os anos da Ditadura Militar. Como o senhor avalia isso? Existiram outros tempos em que o Senado era mais ético?

Concordo com o espírito da declaração da atriz Marieta Severo. O desrespeito ao Legislativo perpetrado muitas vezes pelo regime militar contribuiu para seu perfil atual. Cabe aos eleitores, por meio do voto, melhorar o nível da representação. O que está acontecendo no Senado Federal aconteceu de forma semelhante há dois meses na Câmara dos Comuns, na Inglaterra, e ninguém pensou em fechar a Câmara dos Comuns. O grande problema é como foi possível o cenário deteriorar tanto, e por tanto tempo. Onde estão as instituições de controle? Onde estiveram as diferentes oposições dentro da mesa do Senado nas últimas duas décadas que praticamente ignoraram as irregularidades? E a grande imprensa, só acordou agora?

Olhar Virtual: Existe alguma alternativa que possa reverter o atual quadro de degradação do Senado? Qual seria ela?

Independentemente da crise, o Senado Federal é uma instituição que precisa ser repensada. Ele é muito forte e, de certa maneira, serve como freio às aspirações democráticas, aqui pensadas como regra da maioria. Além de ter praticamente as mesmas atribuições da Câmara dos Deputados no processo legislativo, possui outras poderosas funções privativas; por exemplo, a aprovação dos altos funcionários de Estado – embaixadores, diretoria do Banco Central, membros da cúpula dos tribunais que compõem o Poder Judiciário, procurador-geral da República, diretoria das novas agências reguladoras etc. A questão das suplências precisa ser atacada. No mínimo, seria interessante que os candidatos a suplentes competissem e tivessem obrigatoriamente um grau de exposição maior para o eleitorado. Democracia é escolha pública e nesse caso inexiste escolha. A criação de novos estados em regiões pouco povoadas como o Norte e o Centro-Oeste aumenta significativamente a representação dessas regiões, em detrimento do Nordeste, do Sudeste e do Sul, que ficam sub-representados. Nos Estados Unidos também é assim. Já na Alemanha, não: o número de senadores guarda certa proporção com a população dos Länder. É preciso uma mudança na cultura política.

Olhar Virtual: Em que medida o eleitor pode influenciar essas mudanças?

Somente o eleitor pode mudar essa situação. O Senado Federal, ao contrário da Câmara dos Deputados, que representa o povo, representa os estados-membros da Federação. Ano que vem vamos modificar dois terços do Senado e cabe ao eleitorado melhorar o nível dos representantes votando em candidatos mais representativos. É bom procurar saber quem são os candidatos e quem são os suplentes que, não raramente, exercem os mandatos, qual a função efetiva do Senado Federal e o que se espera de um representante.