Ponto de Vista

O gênero da violência

Aline Durães


A cada 15 segundos, uma mulher é agredida no Brasil. Socos, tapas, pontapés, ofensas verbais, violência sexual. Atos que, para além de demonstrarem as desigualdades de gênero que permeiam a sociedade brasileira, se constituem em crimes, perpetrados, na maior parte das vezes, por homens próximos às vítimas.

Estudiosos das mais diversas regiões do país empreendem pesquisas que, ao esmiuçarem o tema, buscam combater a realidade de violência doméstica e sexual que acomete milhares de mulheres brasileiras. Ludmila Fontinele é um deles. A professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ dedicou boa parte de sua carreira acadêmica para descobrir meios de impedir o avanço da violência de gênero.

No último dia 10 de dezembro, Ludmila apresentou, a representantes de secretarias de Saúde de mais de 30 municípios do Rio de Janeiro, um mapeamento da atenção em saúde às pessoas em situação de violência doméstica e sexual. Segundo o primeiro diagnóstico realizado pela docente, o estado ainda carece de capacitação, de sensibilização dos profissionais e de estrutura para a assistência às vítimas de violência.

Em entrevista ao Olhar Virtual, Ludmila Fontinele comenta alguns resultados preliminares da pesquisa, fala sobre a necessidade de enfrentamento da violência doméstica e avalia as condições do Estado de lidar com o problema. Confira.

Olhar Virtual: Existe um perfil definido de mulheres vítimas de violência sexual e doméstica? Se sim, qual seria ele?

Ludmila Fontinele: A violência sexual contra a mulher, assim como a violência doméstica, é uma das expressões da violência de gênero, além de ser uma violação explícita dos direitos humanos. A violência de gênero está vinculada à distribuição desigual do poder e às relações assimétricas que se estabelecem entre homens e mulheres, perpetuando a desvalorização do feminino e sua subordinação ao masculino. A violência perpetrada contra a mulher causa morte e incapacidade, com maior prevalência entre as mulheres em idade reprodutiva; acontece nas diferentes etapas do ciclo de vida; anula a autonomia da mulher e mina seu potencial como pessoa e membro da sociedade, além de provocar repercussões intergeracionais. Nesse sentido, não existe um perfil de mulheres vítimas de violência.

Olhar Virtual: As agressões sexuais são provocadas, em maioria, pelos parceiros das mulheres?

Ludmila Fontinele: Na maioria das vezes, a violência sexual é cometida por autores conhecidos das mulheres (esposo, companheiro, familiares), ainda que haja certa imprecisão quanto à sua quantificação. A violência sexual dentro do casamento é uma das ocorrências menos denunciadas no Brasil. A crença generalizada de que, no casamento, este tipo de comportamento não é crime cria uma capa de legitimidade para este tipo de violência e desestimula as denúncias e as investigações.

Olhar Virtual: Como ocorre o enfrentamento à violência de gênero contra a mulher? Quais os serviços disponíveis para mulheres que se encontram em situação de violência sexual e doméstica?

Ludmila Fontinele: O enfrentamento à violência de gênero contra a mulher pode ocorrer através do combate, ou seja, através do estabelecimento e do cumprimento de normas penais que garantam a punição e a responsabilização dos autores de violência, bem como a implementação da Lei Maria da Penha; da prevenção, através de ações educativas e culturais que disseminem atitudes igualitárias; da defesa e promoção dos direitos humanos das mulheres, ou seja, do cumprimento das recomendações previstas nos tratados internacionais voltados para a área de violência contra as mulheres; bem como através da assistência,  do atendimento humanizado e qualificado àquelas em situação de violência.

Os serviços destinados às mulheres que se encontram em situação de violência, como as unidades de saúde de referência, as delegacias especializadas, os abrigos e os centros de referência, inserem-se nas diferentes políticas públicas e devem funcionar em rede.

Olhar Virtual: Como a senhora avalia o tratamento que as vítimas de violência recebem nos serviços de saúde? Quais os pontos positivos? E o que ainda falta melhorar?

Ludmila Fontinele: O mapeamento da atenção em saúde às pessoas em situação de violência doméstica e sexual no Estado do Rio de Janeiro, realizado através da parceria entre o Núcleo de Saúde Reprodutiva e Trabalho Feminino da ESS/UFRJ e a Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro, mostrou que a atenção às pessoas em situação de violência ainda está centrada na atenção terciária, ou seja, nos grandes hospitais que possuem pronto-socorro; e que os profissionais mais envolvidos são médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos; o acolhimento é realizado de maneira diferenciada, com a maioria dos profissionais recebendo algum tipo de capacitação.

Espera-se que, com a consolidação dos serviços, a atenção primária, através da Estratégia Saúde da Família, esteja mais envolvida; que os registros possam conter também informações sobre o ato violento e sobre o agressor; que seja implementada a notificação e, principalmente,  os serviços atuem em rede.

Olhar Virtual: Durante a apresentação do mapeamento da atenção em saúde às pessoas em situação de violência doméstica e sexual no Rio de Janeiro, a senhora apontou que os profissionais de saúde ainda enfrentam problemas ao lidar com a gravidez decorrente de violência sexual, já que a maior parte deles encaminha as vítimas ao pré-natal sem oferecer a possibilidade de aborto, prevista em lei desde 1940. Por que, na sua opinião, isso acontece?

Ludmila Fontinele: Em primeiro lugar, devido à falta de serviços para interrupção legal da gravidez no Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, dispomos de apenas um serviço, que é o Hospital-Maternidade Fernando Magalhães, no Município do Rio de Janeiro. Em segundo lugar, devido à dificuldade comumente encontrada pelos profissionais em lidar com suas interdições religiosas. No Brasil, atualmente, o aborto só é permitido por lei nos casos de risco de vida materna e de gravidez resultante de violência sexual. Todavia, a busca das mulheres por serviços que realizam o aborto acaba por ampliar o sofrimento vivido, pela falta de preparo, aliada ao preconceito, dos profissionais de saúde que, ao não garantirem um direito já conquistado, reproduzem uma violência institucional.

Olhar Virtual: Suas pesquisas têm demonstrado que ainda se observam a falta de sensibilização de alguns profissionais e a dificuldade em lidar com o tema da violência. O maior investimento em suporte psicológico para a equipe de saúde pode resolver esse problema?

Ludmila Fontinele: A pouca abordagem sobre o tema da violência de gênero na formação dos profissionais da área da saúde, agravada pelas dificuldades encontradas no atendimento às situações de violência (gravidade das situações, falta de um trabalho em rede, condições de trabalho, entre outras), faz com que seja necessário um suporte psicológico sistemático aos profissionais que participam desse atendimento, reduzindo o sofrimento causado e permitindo a expressão de sentimentos.

Olhar Virtual: Como aparelhar melhor os profissionais de saúde na atenção às vítimas de violência? As autoridades brasileiras estão cientes da importância desse processo?

Ludmila Fontinele: O investimento na formação profissional e na permanente qualificação no âmbito dos serviços, associado à supervisão, pode contribuir para um atendimento humanizado e de qualidade. Em relação às unidades de saúde, a infraestrutura de recursos humanos, de instalações e de material disponível é indispensável a esse tipo de atendimento. Atualmente, nem todos os municípios acolhem a violência como uma demanda a ser atendida pelos serviços, que devem ser garantidos pelo Executivo local. Esse cenário aponta para a importância do controle social e do legislativo municipal no cumprimento das políticas vigentes nessa área.