Ponto de Vista

Tabagismo e mulher: uma questão de gênero

Aline Durães

Ilustração: Caio Monteiro

No último dia 8 de março, o mundo comemorou os 100 anos do Dia Internacional da Mulher. A data, instituída oficialmente em 1910, durante a 2ª Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, na Dinamarca, se constitui para grupos feministas de todos os países uma oportunidade de reivindicar condições de igualdade e de denunciar a opressão e a exploração que ainda marcam o universo feminino.

Os avanços também são lembrados nesta data. No último século, as mulheres passaram a votar e ingressaram maciçamente no mercado de trabalho. Hoje, já governam países, ocupam cadeiras importantes em instituições e grandes empresas e, mesmo que a passos lentos, redefinem seu papel na sociedade.

A sobrecarga de trabalho e a mudança no perfil da mulher contemporânea produzem, entretanto, consequências negativas. Algumas delas residem no campo da saúde. Pesquisas evidenciam, por exemplo, que as mulheres estão fumando mais. De acordo com os dados, o hábito tem início cada vez mais cedo e as fumantes enfrentam maiores dificuldades para largar o vício.

Regina Simões, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc), e Márcia Trotta, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Tratamento do Tabagismo (NETT/UFRJ) do Instituto de Doenças do Tórax (IDT/UFRJ), empreendem uma pesquisa que busca interligar o uso do cigarro à questão do gênero. No trabalho, as duas pesquisadoras associam as crescentes exigências que as mulheres vêm suportando na contemporaneidade ao aumento do tabagismo feminino. Para elas, as condições de vida e alguns hábitos domésticos facilitam o ingresso da mulher na classe fumante.

Em entrevista ao Olhar Virtual, Regina e Márcia falam sobre a pesquisa, comentam a ligação entre gênero e saúde e discorrem também sobre os malefícios provocados às mulheres pela busca da beleza idealizada.
           
Olhar Virtual: A realidade social (que ainda desfavorece a mulher em determinadas áreas) reflete na saúde feminina? Como gênero e saúde se articulam?

Regina Simões: Historicamente, o campo de gênero e saúde se constituiu a partir da constatação, pelo movimento de mulheres, de que o corpo feminino é um importante locus onde se expressa e se exerce a opressão de gênero, desde a repressão à sexualidade, e suas consequências sobre a saúde reprodutiva das mulheres, até as doenças que tipicamente expressam um mal estar da condição feminina como, na contemporaneidade, a anorexia e a bulimia. Não casualmente, identificamos hoje um processo de feminilização de determinadas doenças e agravos à saúde que apontam para as estreitas conexões entre gênero e saúde. A epidemia de Aids e o próprio tabagismo são expressões desses processos.

Porém, é importante não esquecermos que as associações entre gênero e saúde também dizem respeito à saúde masculina. As altíssimas taxas de mortalidade de homens jovens e pobres no Brasil, por exemplo, evidenciam o quanto os estereótipos de gênero, aliados às condições de pobreza e exclusão social, também afetam os homens e sua saúde.
Olhar Virtual: Em que medida a opressão e os preconceitos sofridos pela mulher ocasionam dependência de substâncias como álcool e  cigarro e, consequentemente, acarretam problemas de saúde?

Regina Simões: No que diz respeito à dependencia de substâncias químicas, tais como  álcool,  cigarro e outras drogas, lícitas ou ilícitas, sabe-se hoje que este grave problema de saúde é complexo e multicausal, envolvendo fatores biológicos e sociais. Porém, o paradigma da assistência à saúde ainda é fortemente marcado pela causalidade biológica, minimizando ou desconsiderando as outras dimensões que envolvem os processos de saúde e doença. O campo da Saúde Coletiva vem advogando e comprovando, através de estudos e pesquisas, o peso que os determinantes sociais – aí incluídos os de gênero e raciais - têm na determinação das doenças e agravos à saúde. Tem sido nosso compromisso produzir conhecimentos críticos que comprovem essas relações e subsidiem as lutas das mulheres e de outros segmentos da população que lutam por direitos de cidadania, aí incluído o direito à saúde.

Olhar Virtual: Pesquisas apontam que a mulher vive mais do que homem por se cuidar melhor. Essa afirmação é verdadeira?

Regina Simões: Na cultura de gênero, na qual somos socializados, ainda cabe às mulheres o papel de cuidadoras, fortemente associado ao papel materno, um dos pilares da ideologia de gênero das sociedades capitalistas. No contexto econômico e político atual, quando aumenta o desemprego e decrescem as políticas sociais, as redes sociofamiliares passam a substituir a ação do Estado no suporte social aos mais fragilizados, sendo que, nestas redes, predominam as mulheres. Portanto, além do cuidado com a família, as mulheres pobres assumem também a assistência solidária às suas comunidades, o que representa uma imensa sobrecarga de trabalho.

A pergunta que fazemos é: como pode a maioria das mulheres que vive nestas condições adversas, que incluem o trabalho remunerado, necessário para o sustento familiar, cuidar de sua própria saúde? Pesquisas vêm demonstrando que, em muitas situações, as mulheres negligenciam o cuidado consigo próprias. No caso da epidemia de Aids, por exemplo, verificou-se, nos EUA, que o diagnóstico das mulheres ocorria tardiamente e que sua sobrevida era menor que a dos homens. As razões para tal é que geralmente estão cuidando de parceiros e/ou de filhos infectados em primeiro lugar. Por outro lado, com a entrada massiva das mulheres no trabalho assalariado, elas ficaram mais expostas aos fatores de adoecimento antes associados aos homens, tais como as doenças cardiovasculares, possivelmente devido à maior exposição ao estresse, ao álcool e ao fumo, dentre outros. Portanto, a nosso ver, não há muito o que se comemorar no que diz respeito à saúde feminina, tanto no campo reprodutivo, cujos indicadores mostram um quadro de morbi-mortalidade feminina alarmante e inadmissível, quanto nos agravos resultantes das condições e estilos de vida característicos das sociedades capitalistas ocidentais.

Olhar Virtual: A mulher vincula, em sua opinião, saúde à beleza?

Márcia Trotta: Atualmente, o ideal de feminilidade obriga as mulheres a uma busca de tratamentos sem fim, disciplinando e aperfeiçoando seus corpos com rigorosas dietas, regras de vestuário e maquiagem, tratamentos de beleza de última geração para “problemas” mínimos que as atormentam, colocando muitas vezes sua saúde em risco ao experimentar tratamentos novos e ainda com poucos estudos a respeito das consequências em longo prazo. Portanto, o tempo gasto com esta feminilidade “pasteurizada” torna-se, então, uma corrida constante atrás de um padrão, sempre em mutação, trazendo o desconforto de não ser suficientemente boa.  Centradas nesta automodificação, as mulheres acabam por se afastar da participação do social e da política.  Foucault inclusive coloca que este corpo dócil, treinado e normatizado é uma estratégia direta de controle social, e nele se encontram impressas as marcas da cultura e formas históricas predominantes de masculinidade e feminilidade, assim como do desejo e da individualidade.

Olhar Virtual: Que riscos ela corre na busca pelo ideal de beleza propagado pelos meios de comunicação de massa?

Márcia Trotta: Nos dias atuais, a difusão do cinema e da televisão e de outros meios de comunicação permite transmitir as normas de feminidade através de imagens visuais padronizadas, que passam a ditar as regras quanto a comportamentos, assim como sobre o ideal de beleza do corpo. Um fator chama a atenção quando falamos não somente de mulheres: as dietas.  Num país, onde o culto à beleza e a exposição do corpo, fomentados pela mídia, estão sempre presentes, elas podem gerar estresse psicológico e exacerbar preocupações com o peso, o que tende a aumentar o uso dos métodos de controle de peso como, por exemplo, o fumo. A propalada busca pelo ideal de beleza, pelo “elixir da juventude” leva, em alguns casos, à perda do bom senso. Empurradas a terem corpos perfeitos, as mulheres, quando afastadas dos padrões sociais dominantes de beleza, são rigorosamente julgadas e autojulgadas, sendo o grupo mais insatisfeito com sua aparência o período da adolescência, entre 12 e 19 anos.  É neste grupo também que o cigarro é mais usado como uma forma de dieta, provavelmente tomando como ponto central de suas vidas a busca obsessiva pelo ideal estético de beleza / magreza. Como os jovens são imediatistas, não conseguem avaliar adequadamente as consequências de suas escolhas para sua saúde no futuro.

Olhar Virtual: Que políticas públicas ou iniciativas diferenciadas podem contribuir para a promoção da saúde da mulher? Estamos avançando nisso?

Regina Simões: O quadro epidemiológico da saúde reprodutiva feminina é revelador: temos hoje a ampla disseminação da prática da laqueadura tubária, sendo esta fortemente associada ao parto cesáreo iatrogênico, o que reflete o acesso precário a métodos contraceptivos comuns; as estimativas de altas taxas de morbi-mortalidade feminina decorrentes de abortos clandestinos; a persistência de altíssimas e inadmissíveis taxas de mortalidade materna, o que reflete a precária assistência à gravidez e ao parto; o alastramento da epidemia de HIV/Aids entre a população feminina, entre outros indicadores que revelam um cenário preocupante. Portanto, há inda há muito o que conquistar no que diz respeito à saúde das mulheres, porém, sem desconsiderar que as  desigualdades de gênero não podem ser dissociadas de outras formas de desigualdades sociais: se as brasileiras não atingiram ainda patamares satisfatórios em seus padrões de saúde, constatamos que a maioria dos brasileiros – homens, mulheres, adultos e crianças –  também não o fizeram. Como esperar que a política de assistência à saúde das mulheres seja satisfatória em um quadro de deterioração do Sus? Há que se levar em conta, portanto, o (injusto) modelo de sociedade, de Estado e de políticas sociais que temos e o que precisamos e desejamos para a efetiva promoção da saúde, o que pressupõe a superação das desigualdades sociais e, dentre elas, a opressão de gênero.