Entrelinhas

Aqui ninguém é branco aborda as relações raciais no Brasil

Vanessa Sol

Aqui ninguém é branco é a obra recém publicada por Liv Sovik, professora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ.Com prefácio de Salviano Santiago, importante crítico literário da contemporaneidade, o livro traz ao público a discussão sobre as relações raciais. A obra não pretende ser um tratado para mostrar as mazelas e sofrimentos em virtude de tais relações . Mas, sim, propor uma releitura de elementos da tradição cultural brasileira que traz o conceito de branquitude como centro das relações sociais.  A autora utiliza a música popular brasileira para tentar entender como, na  tradição cultural brasileira, essas relações acontecem e propõe alternativas criativas a elas.

De acordo com Sovik, a intenção não é fazer uma crítica ideológica, mas uma análise cultural e uma crítica política, evitando, a qualquer custo, a idéia de que os brasileiros não se percebem. “Não estou querendo mostrar como não deveria ser. Quero evitar isso”, explica. “Eu procuro mostrar na tradição cultural brasileira os recursos que não têm destaque, como o da vida metropolitana das grandes capitais estaduais, da solidariedade branco e negro, da tradição oral”, completa.

A docente rechaça um suposto tom de denúncia da obra. Segundo a autora, a intenção é gerar o debate sobre as relações raciais, assunto delicado, em sua opinião. “Esse livro, de fato, tem vários tons. Apesar da seriedade com que o escrevi, espero que ele possa ser lido com bom humor. Então, nesse sentido, procurei encontrar coisas engraçadas nas formas de viver da tradição brasileira”, enfatiza.

Olhar Virtual: Atualmente, a senhora vem pesquisando comunicações do cotidiano e seus discursos identitários. A ideia de escrever Aqui ninguém é branco surgiu a partir desse estudo?

Liv Sovik: Sim. Inclusive, o título do livro foi baseado em uma fala do cotidiano.  Estava numa sala de aula na Bahia, no final dos anos 90, e discutia-se muito a questão da afro-baianidade. Essa discussão parecia abarcar todo mundo, mas eu sabia que não. Quando perguntei o que era ser branco na Bahia, me responderam: “Aqui ninguém é branco”. Foi quando vi que minha percepção sobre essa questão era uma concepção de estrangeira, na qual a definição de branco não passava tanto pela identificação cultural. Isso me fez pensar, pois é um absurdo dizer que aqui ninguém é branco, enquanto vemos o privilégio branco ser uma constante na vida social. Dizer “aqui ninguém é branco” é uma frase identitária brasileira, reconhecida e pronunciada diante de pessoas como eu, que sou estrangeira. Aqui ninguém é branco, como os brancos dos EUA, da Europa, ou melhor, com as definições que se tem lá. Minha idéia é de que há brancos, sim, no Brasil.

Olhar Virtual: Como o livro está organizado?

Liv Sovik: A primeira parte do livro, que compreende o primeiro e o segundo capítulos, é mais normativa. O primeiro capítulo é conceituação do que é a branquitude brasileira, uma tentativa de entender como o valor do branco continua existindo como um valor superior ao do mestiço, quando tudo se afirma como sendo mestiço. O segundo capítulo aborda a influência norte-americana, porque é uma referência constante em qualquer discussão sobre relações raciais, surgindo como o exemplo negativo.  Na segunda parte, há quatro capítulos sobre música: “A Garota de Ipanema olha em volta: cosmopolitismo e mestiçagem na bossa nova”; “Um lírio em lamaçal: a atualidade de Angela Maria”; “Vozes ouvidas nas Noites do Norte: branco e negro em Caetano Veloso”; “A travesti, o mediador e o cidadão: identidades brancas na música popular atual”. Através deles tento levantar a algumas recomendações ou alternativas de forma mais aberta.

Olhar Virtual: A senhora percebe alguma contradição no discurso brasileiro quando o assunto são as relações raciais? Quais contradições são essas?

Liv Sovik: Ser branco é uma função social, não é uma cor exatamente. A cor é uma condição para essa função. A matiz exata da cor pode variar até regionalmente. Um branco na Bahia não é branco no Rio Grande do Sul. Tem uma série de formas em que a branquitude se define relacionalmente. Isso é algo que a frase esconde, porque volta para a relação internacional. Já ouvi europeus dizerem: “Aqui ninguém é branco.” Isso é uma percepção real, só que, internamente, se você vai ver a identidade brasileira sem o contraste usado no exterior. Existem brancos, sim, no Brasil e que têm os privilégios do branco do mundo inteiro, sobretudo do ocidente.

Olhar Virtual: Em seu livro, a senhora aborda o conceito de branquitude, desenvolvido pela pesquisadora americana Ruth Frankenberg. A senhora poderia explicar esse conceito?

Liv Sovik: A Ruth Frankenberg foi quem mais desenvolveu essa idéia. Mas existe uma vertente de pensamento sobre isso, principalmente, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Houve uma época em que os irlandeses não eram considerados brancos nos Estados Unidos, por exemplo. Há um livro que fala como eles foram considerados brancos. Há também a discussão sobre os judeus que em certo momento da história também não eram considerados brancos. Eu queria arraigar a questão da branquitude não numa discussão conceitual, mundial ou estrangeira, não queria colocar essa discussão nesse contexto, queria mesmo entender como a branquitude funciona aqui no Brasil e cai imediatamente na discussão da mestiçagem. A branquitude é um lugar de fala. É um espaço social ocupado por pessoas que cumprem certos requisitos de aparência, mas isso não é muito exclusivo no Brasil. A questão de ser branco é uma função social que dá uma expectativa de autoridade para a pessoa branca e isso se reforça na sociedade.

Olhar Virtual: A branquitude é uma forma de estabelecer um certo tipo de hierarquia social?

Liv Sovik: Sim. Meu livro trabalha exatamente com essa questão. Ele parte de duas constatações que fiz. Uma é que, apesar da negação de branquitude, ela existe, mas  tem outras feições, isto é, não é igual em todos os lugares. É um lugar de onde se fala de cima, é lugar da fala de mando, em geral. Outra constatação é que, no Brasil, a relação entre figuras diferentes na sociedade é carinhosa. Isso também é utilizado para explicar a mestiçagem, que parece fruto do amor, mas que, historicamente, não é. Foram essas duas constatações que me fizeram pensar como é que se fala sobre o “ser brasileiro” e outras possibilidades interpretativas, como você pode trabalhar de dentro dessa tradição.  No livro, proponho algumas sugestões (de estrangeiras) de como ver uma outra imagem – mais igualitária – de “ser brasileiro”.

Olhar Virtual: Que sugestões são essas?

Liv Sovik: No livro, há um ensaio sobre a “garota de Ipanema”, que é a imagem da mulher ideal branca-mestiça, mas é também a imagem do cosmopolitismo. Ela representa a bossa nova que estourou as fronteiras sul-norte. A bossa nova entrou em pé de igualdade com a música do norte, mas hoje está defasada, porque a globalização fez com que o cosmopolitismo fosse mais propriedade do rapper e do funk. Que implicações isso tem, por exemplo, para as políticas culturais regionais? A “garota de Ipanema” é carioca, o Rio era o retrato do país. Hoje, o retrato do país não passa por um lugar só. O que eu sugeri é que o Brasil pudesse se pensar como um país de várias metrópoles, onde cada uma tem uma relação diferente com o resto do mundo. Isso implica abrir mão da imagem branca e também da relação que concentra numa única cidade, num único símbolo, sua afinidade com o mundo. Se você desmonta a idéia do sudeste como modelo para tudo, você pode pensar que o racismo é diferente nas diferentes regiões do país e do mundo.

Olhar Virtual: Por que a senhora relacionou a questão racial com a música popular brasileira em Aqui ninguém é branco?

Liv Sovik: Porque, na música, é possível encontrar chavões e os artistas inventam coisas novas e, ao mesmo tempo, têm que usar um acervo reconhecível. Essa combinação é perfeita. Trabalhando com a música você não consegue chegar a uma conclusão final. A música é um objeto que faz repensar e qualificar cada conclusão. Para mim, isso é muito benéfico para o trabalho.

Olhar Virtual: Há um preconceito racial velado no Brasil?

Liv Sovik: Sim. Em todos os países há o preconceito velado e o explícito, porém, acontecem de maneira diferente em cada local.  Há um texto de Stuart Hall, que se chama “Raça com significante flutuante”, que diz que nossos corpos são textos e são textos historicamente construídos. Então, acreditamos piamente que a leitura que fazemos do corpo do outro é leitura verdadeira. Mas há mini-histórias por trás desses textos e não relemos essas histórias, apenas vemos e decidimos.

Olhar Virtual: Por que num país como o Brasil, com uma população mestiça, ainda há uma tentativa de valorização do branco? Há alguma interferência estrangeira nesse processo?

Liv Sovik: Há a valorização do branco em função da herança histórica. É um resquício da escravidão, da opressão, do menosprezo. O Brasil é um país com fortes traços eurocêntricos. Em um capítulo do meu livro, tento pensar como o discurso norte-americano é muito repressor. Os Estados Unidos acham que têm sempre a razão. É muito difícil colocar o discurso deles no seu devido lugar, porque eles sempre chegam com o pacote pronto de imposições sobre raça. Eles têm uma idéia de supremacia muito forte. Temos que rejeitar isso, ao mesmo tempo, temos que pensar que os Estados Unidos foram muito influenciados por pressões externas, principalmente, nos anos 50. No Brasil, a ideia que prevalece é a de que não se deve pensar sobre o que se diz lá fora, mas isso não deve ser bem assim, pois todos os países estão sujeitos a pressões estrangeiras.

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