Entrelinhas

Praça Saens Peña: a Cinelândia da Zona Norte

Aline Durães

Analisar a trajetória de luxo e decadência dos cinemas de rua da Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Esse foi o objetivo de Talitha Ferraz, doutoranda da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, ao escrever o livro A segunda Cinelândia Carioca – cinemas, sociabilidade e memória na Tijuca.  

A obra, publicada pela editora MultiFoco, é o resultado da dissertação de mestrado de Talitha. A autora conta, em pouco mais de 300 páginas, a história dos famosos cinemas da Praça Saens Peña, desde a fundação do primeiro deles, em 1907, até sua derrocada, ocorrida, em grande parte, na década de 1980. 

Em entrevista, Talitha Ferraz fala sobre o processo que transformou o bairro da Tijuca em um dos maiores pólos exibidores de filmes do Brasil. “O cinema era parte da vida dessas pessoas, dos encontros, dos namoros, dos flertes e até das traições. Era um espaço de lazer para a família”, afirma. Confira a entrevista na íntegra. 
 

Olhar Virtual: Por que pesquisar os cinemas da Tijuca? 

Talitha Ferraz: Por ser uma pesquisa etnográfica, é importante que o pesquisador tenha uma relação próxima com o campo de trabalho, oferecendo um pouco de si na pesquisa. Eu nasci no Rio Comprido (bairro vizinho), mas vivi na Tijuca. Frequentava desde pequena as salas de cinema e vi o fechamento delas. Por isso resolvi pesquisar a história do lugar, que foi um dos maiores pólos exibidores do Brasil e que hoje não tem nada. 

Olhar Virtual: Como se formou esse pólo exibidor de filmes na Tijuca? 

Talitha Ferraz: Ao contrário da Cinelândia do Centro da Cidade, que foi resultado de um empreendimento empresarial, com investimentos financeiros do governo e da iniciativa privada, a Tijuca se tornou um pólo exibidor graças a uma dinâmica própria do bairro. Não houve planejamento ali. No início, os cinemas de todo o Estado eram efêmeros. O mercado ainda não estava consolidado e as próprias salas não eram comerciais. Mas, na Tijuca, as salas passaram a durar mais tempo. 

Olhar Virtual: Como eram os primeiros cinemas tijucanos? 

Talitha Ferraz: Inicialmente, o que existia era os cine-teatros, onde se mesclava cinema com outras manifestações artísticas, como shows de mágica, por exemplo. Tudo acontecia no mesmo espaço. Depois, as salas passam a se fixar como exclusivas de cinema. Neste momento, surgem os movie palaces e os “poeiras”. Os “poeiras” eram cinemas um pouco menores, sem grande luxo, que exibiam filmes temáticos, como faroeste, por exemplo. Já os movie palaces tinham como objetivo oferecer luxo ao grande público, com cadeiras acolchoadas, ar refrigerado, telas enormes, bomboniére. São cinemas que exibiam lançamentos hollywoodianos, mas também filmes nacionais. O Olinda, por exemplo, apresentava shows com cantores do rádio que antecediam, na maior parte das vezes, os filmes.  

Olhar Virtual: Qual a relação entre a urbanização da Tijuca e os cinemas de rua? O processo de urbanização ampliou a procura por cinemas ou o sucesso dos cinemas deu fôlego à urbanização? 

Talitha Ferraz: Foi um processo concomitante. Os cinemas influenciavam o crescimento das linhas dos bondes, pois promoviam uma circulação mais profícua, mas de alguma forma, esse papel do cinema não seria possível se não houvesse investimento na urbanização do bairro.  

Olhar Virtual: Em que aspectos o pólo cultural influenciou a vida dos tijucanos? 

Talitha Ferraz: Desde muito cedo, na Tijuca, organizavam-se pequenos grupos culturais, reuniões em casarões. Era o lugar de chácaras, dos hotéis; um bairro usado como casa de campo e encarado como espaço de lazer e descanso. O cinema entra e passa a agregar os centros. Ele vem como mais um componente para esse lugar de lazer e descanso. Com a urbanização, o lazer fica mais moderno e ele entra para auxiliar a composição cultural do bairro. O cinema era parte da vida dessas pessoas, dos encontros, dos namoros, dos flertes e até das traições. Era um espaço de lazer para a família.  

Olhar Virtual: Por que os cinemas de rua fecharam as portas? 

Talitha Ferraz: Não tem um único culpado. A cidade mudou e as pessoas modificaram sua relação com a calçada. Elas passam a se motorizar, se locomovem com os automóveis, o que possibilita a elas transitar por outros bairros. A violência começa a crescer. O shopping nasce, com todos os seus atrativos, dentre os quais o cinema se destaca. Na década de 1980, aparecem os videocassetes e os espectadores mudam sua relação com o cinema, fixando-se mais em casa. Além disso, o investimento passa das salas de rua para as salas mais preparadas tecnologicamente. Os recursos destinam-se às salas multiplex. Não foi feita uma reformulação das salas de rua para atender as novas demandas. Com isso, elas fecham. 

Olhar Virtual: Quais as principais consequências da concentração dos cinemas tijucanos em um shopping center?

Talitha Ferraz: O cinema é arte e pensamento. O cinema de rua era um espaço no meio da cidade; era uma obra arquitetônica cujo objetivo era a exibição de filmes. A cidade perdeu com o fechamento das salas. Ir para um shopping pensar o filme é diferente de fazer o mesmo ao sair de um cinema de rua. No shopping, o cinema é apenas mais uma atração, mas não é o ator principal. Os cinemas no Shopping Tijuca ficam no último piso. Nada ali indica que haja cinema. Na rua, os cinemas eram um componente das calçadas, promoviam a circulação de pessoas, movimentavam a cidade. Os prédios foram ocupados para outra finalidade e, com isso, perdemos importantes patrimônios arquitetônicos. O que se faz com esses prédios é uma pena: cartazes comerciais são fixados em suas paredes, eles ficam sujos, o comércio ambulante passa a dominar as ruas. Hoje, são espaços que funcionam muito mais para o capital do que para a arte e o pensamento.