Entrelinhas

Os prós e os contras da centralidade do Brasil na globalização

Ana Carolina Correia

Qual o lugar e a influência do Brasil no mundo? Essa é a pergunta que Giuseppe Cocco, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, tenta responder ao longo de MundoBraz: O devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo (Ed. Record, 2009).

No livro, o autor franco-italiano procura estabelecer prós e contras da centralidade do Brasil na globalização e discute diretamente os rótulos neoliberais que rondam o país.  o texto permite mapear horizontes e dificuldades enfrentadas pelo país frente ao mundo e à tão falada globalização para, a partir daí , moldar possíveis soluções para os problemas decorrentes de sua posição no cenário internacional.

Olhar Virtual: Pode-se dizer que o MundoBraz: O devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo  complementa seu precedente Globo (AL): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada?

Giuseppe Cocco: Sim, a ideia era exatamente essa, eu queria aprofundar e desenvolver algumas das reflexões que tinha feito com Antonio Negri sobre a Globalização e a América Latina naquele livro. Com MundoBraz a proposta é pensar o mundo, o império, o trabalho, a partir de um ponto de vista brasileiro. Para isso dialoguei com a antropologia de Eduardo Viveiros de Castro, de maneira que, acho, ele não aprova. Mas para mim foi um achado potentíssimo. Vou fazer uma brincadeira: eu penso que o livro dele sobre o pensamento selvagem dos ameríndios (A inconstância da alma selvagem) deveria ser obrigatório em todas as escolas! Claro, é uma brincadeira, porque nesse pensamento nada deve ser obrigatório.

Olhar Virtual: Qual o significado do título?

Giuseppe Cocco: O MundoBraz pretende discutir a centralidade do Brasil na globalização, mas uma centralidade paradoxal, exatamente como o título indica. A centralidade do Brasil é dupla, positiva e negativa, e, mesmo quando é positiva, acontece pelo avesso do que afirmam os regimes de discurso hegemônicos (sejam eles conservadores ou progressistas). Pensamos, por exemplo, a política externa dos últimos oito anos (do governo Lula). Trata-se de uma grande inovação. O Brasil tem sua própria política externa. Ao mesmo tempo, a inovação não está na construção da soberania, mas no governo da interdependência (o G20, os Brics — acrônimo para Brasil, Rússia, Índia e China). Também em termos de desenvolvimento, a novidade não está na homogeneidade social proporcionada pelo crescimento industrial, mas na mobilização pela política social das condições de desenvolvimento, de um outro tipo possível de  desenvolvimento. Enfim, em termos culturais, as políticas do Ministério da Cultura não dizem respeito à construção de uma identidade nacional, mas ao reconhecimento das diferenças. O devir-Brasil do mundo está nessas dinâmicas, na “autonomia-em-rede” de sua política externa, na política social (o Bolsa-família e as reservas indígenas) como base de um desenvolvimento democrático, na política cultural (os pontos de cultura e políticas de cotas para pobres e para negros) como base de uma política da diferença. O devir-Brasil não é soberano, nem identitário e ainda menos nacional. Por isso, o devir-Brasil do mundo é ao mesmo tempo um devir-mundo do Brasil: uma desconstrução do Brasil, como diria o Eduardo Viveiros de Castro.

Olhar Virtual: O que é a “brasilianização” descrita no livro e o que isso acarreta no cenário mundial?

Giuseppe Cocco: “Brasilianização” é o lado negativo dessa centralidade. É o Brasil do latifúndio, da monocultura de soja ou da pecuária extensiva, da mega barragem de Belo Monte, da violência metropolitana, da desigualdade. Enfim, é o Brasil do Morro do Bumba, para lembrar uma tragédia recente. O campo de concentração dos pobres se transforma em algo como um campo de extermínio; as vitimas (os pobres) são responsabilizadas pelos governantes e pela mídia por suas próprias mortes, como se as merecessem. A prefeitura do Rio de Janeiro, a mídia do Rio de Janeiro são atores fundamentais da “brasilianização” como política contra os pobres, pela remoção dos pobres. De maneira escandalosa, transferem suas responsabilidades para as vítimas e criminalizam o pouco que foi feito. No Morro dos Prazeres, o deslizamento aconteceu onde não houve urbanização e não, como tentam dizer, porque foi feito o Favela-bairro.
“Brasilianizaçao” porque com a globalização neoliberal o mito antigo do “Brasil país do futuro” se inverteu, é o “futuro” que virou Brasil: a desigualdade, o emprego informal, o desmonte da proteção social, a violência se tornaram o horizonte não mais do subdesenvolvimento, mas das próprias dinâmicas de modernização “flexível”.
Por um lado, a brasilianização mostra um lado negativo do mundo, da modernização, o desmatamento da Amazônia, a violência, o racismo, a recusa da UFRJ em implementar as cotas para pobres e para negros, as privatizações que continuam, tudo que é pejorativo, que é contra os pobres. Nesse sentido, as economias centrais se preocupam  em não se tornar  o Brasil. É o Mike Davis que nos fala — dessa vez numa perspectiva progressista — mal das favelas, das favelas como ameaça.
Por outro lado, Mundobraz é tudo que desloca isso para outra noção de tempo: não mais a cronologia do crescimento que nos levaria do subdesenvolvimento ao desenvolvimento, mas o devir como transformação da noção de desenvolvimento: não mais remover as favelas (como pensam os reacionários e os progressistas neste momento no Rio de Janeiro), mas nelas encontrar (e reconhecer) a potência da vida, a potência dos pobres. O Brasil não precisa se tornar igual aos países desenvolvidos, não precisa passar por um neo-desenvolvimentismo, que necessariamente implica um nacionalismo que esvaziaria a riqueza de sua política externa, por um industrialismo que acabaria com o meio ambiente e não resolveria as questões do emprego, por um identitarismo que destruiria a criatividade de suas diferenças: de uma multidão composta por índios, negros, mestiços, pobres etc.

Olhar Virtual: Por que é tão importante evitarmos os rótulos neoliberais?

Giuseppe Cocco: Porque eles nos falam da globalização como afirmação de um mundo homogêneo e indiferente. O problema desses rótulos é que eles alimentam aqueles especulares que assim pensam que, para responder a essa globalização, é preciso reconstruir uma soberania, uma identidade e uma separação: nos termos que as novas extremas direitas europeias fazem para discriminar os migrantes internacionais.
A globalização é um processo aberto, é nele que devemos lutar para construir novas alternativas, por exemplo, entre “brasilianização" do mundo e devir-Brasil do Mundo. A América do Sul e o Brasil anteciparam a crise de valores do neoliberalismo que agora se transformou em crise da bolsa de valores.
Mas não temos outro modelo. A crise está aberta, ela pode ser uma perspectiva de construção, de invenção de outros valores.
Esse horizonte está, a meu ver, na possibilidade de construir, além da dicotomia estado versus mercado, uma esfera do comum: como no caso da demarcação contínua das reservas indígenas. Elas não são nem estatais, nem privadas, são comuns, e essa dimensão comum diz respeito à manutenção de modos de vida, que se afirmam na diferença e pela diferença. Precisamos pensar as favelas e também os conjuntos habitacionais (digamos as cidades dos pobres) nesse mesmo sentido, como territórios do comum. Queremos pensar a UFRJ nesse mesmo sentido!