Olho no Olho

A Nova Lei do Direito Autoral

Ana Carolina Correia e Daniel Barros

Ilustração: João Rezende

Disponibilizado para consulta pública, desde junho passado, no site do Ministério da Cultura (http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral/), o projeto de lei do direito autoral vem para conciliar interesses de autores e público, com todas as complexidades de que se reveste a relação. As mudanças buscam atualizar a legislação de 1998, levando em consideração as mudanças tecnológicas dos últimos 12 anos.

Dentre as propostas, que ficarão sob consulta pública no site até o próximo dia 28, estão a autorização da cópia para uso individual e educacional, a punição para a prática do chamado “jabá” (pagamento a canais de rádio e TV para execução de música de um determinado artista), a remuneração aos produtores e diretores de material audiovisual, conforme sua exibição em cinemas e televisão, e o maior controle do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD). O ECAD, atualmente, é alvo de inúmeras críticas por parte dos titulares das obras. O deputado Alexandre Cardoso, do PSB-RJ, chegou a propor projeto de lei que extingue o órgão, mas admitiu à Folha de S. Paulo que a discussão dificilmente terá futuro, já que a problemática é abordada no projeto de lei que está disponível no site do Ministério da Cultura.

A nova lei também objetiva corrigir determinados pontos da legislação em vigor, que torna ilegal, por exemplo, práticas aceitas socialmente como a reprodução de trechos de obras em copiadoras universitárias. Mas ainda restam dúvidas sobre o que mudará na lei e se essas mudanças efetivamente trarão benefícios. Para tratar do tema, o Olhar Virtual ouviu dois professores de áreas distintas da UFRJ. Um deles é Gustavo Barreto, professor da Escola de Comunicação da UFRJ. O outro é João Marcelo de Lima Assafim, advogado e professor de Direito Comercial da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.

Gustavo Barreto

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação (ECO-UFRJ) e professor em Estágio Docente na ECO-UFRJ



Acho a lei atual de direitos autorais obsoleta e restritiva. Obsoleta porque já tem 12 anos, em uma era de profundas transformações tecnológicas. Restritiva porque é muito tímida em seu capítulo IV, que trata das limitações dos direitos autorais, ou seja, no seu uso educacional, público, livre. Da forma que está, a lei não permite copiar trechos de livros para fins educativos, tornando ilegais todos os serviços de “xerox” nas escolas e universidades.

Além disso, não é permitido copiar músicas de um CD para o celular, nem mesmo copiar um filme para o computador. Uma lei, portanto, que nunca poderá ser plenamente aplicada, mas que tem servido para reprimir o usuário. Por exemplo, se eu, professor de uma escola pública, decido exibir um filme para minha turma, a fim de discutir determinado tema, posso sofrer as consequências da lei. Eu mesmo, dando aulas na UFRJ, posso sofrer uma intervenção. O material que eu ilegalmente copio pode ser apreendido, com multa diária pelo descumprimento e das demais indenizações cabíveis, independentemente das sanções penais aplicáveis. Como sou “reincidente”, ou seja, dou aulas há dois semestres, o valor da multa poderá ser aumentado até o dobro, seguido de possível destruição de todos os exemplares ilícitos. De quebra, a copiadora do Centro Acadêmico perderia suas máquinas, caso a Polícia Federal aparecesse por lá. O mesmo vale, com adaptações, para conteúdo audiovisual, espetáculos etc. Pode ser um exagero imaginar esse cenário, mas como ele está descrito no capítulo II, “Das Sanções Civis”, pode ser utilizado. Está dentro da lei. Muitos usuários, com o objetivo de ampliar um determinado debate por meio da Internet, já sofreram sanções que constituem grave ameaça à liberdade de expressão.

A modernização da lei 9.610 de 1998 deveria ao menos tentar responder aos desafios colocados pela sociedade da informação, pelas novas tecnologias. Os agrupamentos culturais estão, em todo o país, promovendo uma nova forma de comunicação, uma nova forma de cultura, mais participativa. Estão exibindo livremente seus filmes e músicas, com finalidade exclusivamente cultural e educacional. Estão fazendo cópias digitais de filmes para a circulação e exibição sem interesse de lucro. Estão recriando antigas histórias, recontando do seu próprio jeito nossa História, “reformatando” nossos valores. Ao mesmo tempo em que isso está acontecendo, existe uma lei que privilegia, para citar um exemplo, músicas veiculadas mediante pagamento às rádios, prática conhecida como “jabá”. Isso tudo em detrimento de suas produções musicais populares, tradicionais e regionais. Na contramão, incentivados pelo próprio Ministério da Cultura, por meio dos Pontos de Cultura e Pontos de Mídia Livre, esses grupos populares produzem softwares livres, utilizam ferramentas digitais para a comunicação em rede e a internet para divulgarem o que é produzido na sua comunidade. Copiam, de fato, para seus acervos, bibliotecas e videotecas populares, que fundamentam o sentido principal de toda obra, que é seu encontro com o público.

Fundamentalmente, tentamos equilibrar dois fatores: remuneração justa do autor e acesso público aos conteúdos. Os Pontos de Cultura, um excelente modelo cultural que tem dado certo, remunera o autor – dentro do sistema público e, portanto, controlado pela sociedade por meio do Portal da Transparência – e ele, a partir desse incentivo, passa a trabalhar exclusivamente pela democratização da produção, sem se preocupar tanto com a sustentabilidade de seus projetos. No ECAD, escritório responsável pela arrecadação e distribuição, não há transparência pública. Não há, sequer, participação significativa da sociedade civil organizada.

Eu espero que a modernização trate desses temas. Tenho acompanhado a discussão pelo portal de consulta pública que o Ministério da Cultura criou. Há muitos pontos interessantes no projeto, mas o mais importante é que ele está sendo feito colaborativamente, por meio da consulta pública. Não me interessa tanto o que vai sair daí, e, sim, o fato de que esse processo é muito mais aberto do que a maior parte das leis que são feitas no Brasil, incluindo a atual lei do direito autoral.

Ainda não sabemos quem serão os maiores beneficiados. Depende do resultado das negociações entre os diversos segmentos. Se prevalecer a lógica de que a cultura é um bem privado e que a atual economia depende primordialmente de atravessadores, perdem os autores e a cultura brasileira. Se prevalecer a ideia de que as novas tecnologias estão remodelando a economia da cultura, a forma de produzir e distribuir cultura, e que este processo deve ser fundamentalmente público, mediado de forma transparente e participativa pelo Estado, envolvendo todos os segmentos, ganham os autores e a cultura brasileira. A meu ver, esses parecem ser dois modelos em disputa atualmente.

 

João Marcelo de Lima Assafim

Professor adjunto da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ e especialista em direito comercial e propriedade intelectual.


A propriedade intelectual possui duas pernas. Uma abrange a indústria e o comércio. A outra trata de produtos artístico-culturais. Desde a Convenção de Berna, na Suíça, realizada em 1986, há a proteção do direito de autor. Anos depois, em 1997, no Fórum Internacional da OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual) em Sevilha, na Espanha, eu disse que a proteção para a arte deveria ter o mesmo status que aquele da indústria e do comércio, dificultando monopólios para dar espaço para a competição. Fui muito criticado. Dizia-se que essa proteção diferenciada era fundamental, porque garantia a produção de cultura. Com o tempo, todas essas obras artístico-culturais ganharam nova dimensão devido ao advento da internet. Houve uma expansão estupenda da distribuição dessas obras.

O resultado da mudança causada pela internet foi o surgimento de uma dualidade: exclusividade versus liberdade. Passou a haver um conflito entre os titulares e os usuários. Antes isso não era tão grave, pois a cópia nunca era tão perfeita quanto o original. Mas num mundo digital, a cópia tende a ter qualidade semelhante. Então veio à tona a discussão “precisamos ou não de um novo ordenamento para a internet?” e também “quais reproduções serão autorizadas e quais não serão?”

Nessa discussão existe uma pressão política muito grande dos titulares dos direitos de autor, na verdade, alguns produtores, muitas vezes, as editoras. Quantas vezes diretores de cinema não se sentiram prejudicados porque o trabalho da direção não era reconhecido como suscetível de proteção pela lei do direito do autor? Como a lei não estava clara, vários grandes diretores não tiveram a obra apreciada, como o J.B. Tanko. A demanda social pelos direitos do autor exigiu a mudança na lei. O novo projeto é taxativo na questão dos direitos de quem produz material audiovisual. Além disso, ela também faz jus ao trabalho tão importante dos arranjadores, agora com direitos bem delimitados.

Outro exemplo de falta de clareza na lei em vigor concerne à trava tecnológica que alguns artistas põem em seus cds, impossibilitando uma mera cópia de segurança. As pessoas têm dúvida se essa trava é lícita ou não. Com o novo projeto de lei, fica claro que não é. Ou seja, o grande benefício que a lei traz é a clareza, que faltava na lei anterior.

Por exemplo, a prática do “jabá que tem mais relação com a lei de práticas de mercado do que com direito de autor, no novo projeto é claramente submetida às aplicações da lei n° 8.884/1994, que tem caráter mais econômico. Ou seja, a questão do direito de autor se aproxima da propriedade intelectual industrial, privilegiando direitos do consumidor e a concorrência, como eu previ há 13 anos. Vendas casadas (quando um consumidor só pode adquirir um produto se adquirir outro) e exclusividades na contração de licenças “cobertor” (que autoriza o detentor da licença a tocar uma música publicamente o quanto quiser) são outras práticas que precisam estar submetidas à outra lei.

Outro grande feito é que as copiadoras universitárias, que eram interpretadas como ilícitas por determinadas associações, agora serão claramentelegais. Mesmo com a lei atual, a minha pasta na “xerox”, por exemplo, com textos meus, disponibilizados por mim para serem copiados, não são suscetíveis às punições da lei.

Quanto à discussão sobre o funcionamento do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), eu acho que ele deixa claro como arrecada, o problema é que ninguém sabe como acontece a distribuição do que é arrecadado. É isso que é criticado pelos artistas. Logo, é preciso haver mais transparência. Não acho que o ECAD deva acabar, mas acho necessário mais transparência. Isso só acontecerá se partir de lá de dentro.

Enfim, com a aprovação da nova lei que está sob consulta, o usuário será, de longe, o maior beneficiado, pois consagra-se o direito de acesso. Em matéria de propriedade intelectual, o Brasil sempre esteve na vanguarda. Até porque poucos países possuem produção cultural tão opulenta quanto à brasileira. A lei, agora clara, facilitará o trabalho do magistrado e delimitará o direito de autor de um modo que poucos países no mundo conseguem fazer.