Ponto de Vista

A materialidade do crime sem corpo

Ana Carolina Correia

Ilustração: João Rezende

Desde o início de julho, o questionamento de onde estaria Eliza Samudio – ou seus restos mortais – estampa jornais, noticiários, além de ser assunto das conversas de mesa de bar. A grande comoção nacional que ronda o caso do goleiro Bruno colocou em foco uma questão há muito debatida no meio judicial e policial: como comprovar a materialidade de um crime sem corpo?

Segundo o artigo 167 do Código de Processo Penal, não sendo possível o acesso a vestígios do crime, a Justiça admite a troca do corpo de delito pela prova testemunhal. “Trata-se de hipótese excepcional. A regra é que, se o crime deixa vestígios - e o homicídio deixa um cadáver -, somente com o exame do corpo de delito é possível processar o suspeito e condená-lo. Busca-se, com isso, evitar erros judiciários, como, por exemplo, a condenação de alguém pela morte de uma pessoa que ainda está viva. Agora, a lei precisou contemplar hipóteses em que os vestígios desaparecem, muito embora seja altamente provável a existência do fato”, diz Geraldo Prado, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e professor de Direito Processual Penal da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ).

De acordo com o desembargador, nos dias atuais admite-se que outras perícias apoiem a prova testemunhal, como no caso dos exames de DNA e das investigações com luminol.

Luminol

Segundo Cláudio Lopes, do Laboratório de Análises e Sínteses de Produtos Estratégicos (Lasape-UFRJ), “o luminol, desenvolvido pela UFRJ, é um reagente de quimioluminescência que, em decorrência de uma reação química, produz radiação, permitindo descobrir se em determinado local há traços de sangue, até na proporção de 1:1.000.000.000, em todos os tipos de piso, em até 6 anos da ocorrência do crime”. A substância é um dos grandes aliados nas investigações criminais hoje. Ele “ilumina” o caminho para que, junto com uma investigação de antropologia forense, se crie um cenário capaz de auxiliar na elucidação de um crime. Mas tais exames não correspondem ao corpo de delito, pois isoladamente não viabilizam a determinação do nexo de causalidade, que é imprescindível em termos de direito penal.

A (im)parcialidade da mídia

Outro ponto de importante discussão em um crime com tanto apelo público é o da parcialidade do júri diante da comoção provocada pela mídia. Tanto o goleiro Bruno, como o casal Nardoni e Suzane von Richthofen, viram seus casos no centro da mídia e a possibilidade de um julgamento prejudicado. “A intensa cobertura jornalística dos casos é bastante estudada no meio jurídico, sendo tema de pesquisas e teses, quase todas apontando para o enorme risco à imparcialidade dos julgadores e, portanto, para as regras do Estado de Direito”. conclui o desembargador Geraldo Prado.

Um crime sem corpo não é mais, como em séculos passados, um crime sem solução. As mudanças na lei e os avanços tecnológicos, que colaboram com a identificação de um suspeito e com a construção lógica do cenário do crime, transformam os paradigmas da sociedade. Porém, agora, a nova preocupação é a influência que a mídia pode trazer na parcialidade de um julgamento.