Olho no Olho

Os limites da decisão

 

Gabriel Demasi e Thais Carreiro

 

No dia 30 de maio, foi publicada no Diário Oficial do município do Rio de Janeiro a determinação que estabelece que os menores apreendidos nas chamadas "cracolândias" sejam levados para internação compulsória. Na última sexta-feira (03), dezesseis menores e 53 adultos foram recolhidos em operação anti-crack na favela do Jacarezinho, zona norte da cidade.

A ação, comandada pelo secretário de Assistência Social do município, Rodrigo Bethlem, em parceria com a Polícia Militar, tem causado polêmica na mídia e entre especialistas. Muito além de uma questão de saúde pública, os direitos desses dependentes estão em jogo. É fato que a dependência do crack é realmente um problema acima do alcance do discernimento de uma criança, entretanto, até que ponto essa medida compulsória é eficaz? Entrevistamos dois especialistas, das áreas jurídica e psiquiátrica para discutir esta questão: os menores de idade devem ou não decidir sobre sua própria internação?

Marcelo Cruz

Psiquiatra, coordenador do Programa de Estudos ou Assistência ao Uso Indevido de Drogas (PROJAD), do IPUB.

“A maneira como isso está sendo feito não é produtiva. Antes estavam sendo realizadas ações para pessoas que têm problemas com crack, tanto menores de idade quanto adultos, que não eram compulsórias, o que é importante para que essas pessoas consigam se engajar no tratamento. Não adianta simplesmente internar compulsoriamente todo mundo e achar que isso vai resolver o problema. É possível que o paciente saia desse abrigo, dessa internação, do mesmo jeito que entrou, e volte a usar drogas como usava antes. Além do mais, quando se faz algo compulsório, os vínculos que haviam sido estabelecidos anteriormente são quebrados, os projetos são interrompidos. Isso gera uma desconfiança das pessoas em relação ao poder público, você muda a relação: em vez de ser uma relação de oferecimento de serviço, passa a ser uma relação de perseguição.

Mas eu acho também que existem situações especificas, pontuais, em que pode ser necessária uma ação compulsória. Se uma pessoa está em risco de vida, principalmente se falamos de crianças e adolescentes, pode ser necessário intervir. O ideal é que sejam os familiares que façam isso, mas se o menor não tem uma família, é o Estado que intervém. Isso não pode ser feito no atacado, para todas as pessoas. O tipo de abordagem anterior estreitava o vínculo com os profissionais e podia inclusive oferecer um atendimento mais individualizado, em que se podia julgar quando seria necessária uma intervenção mais enérgica, incisiva. É preciso internar, mas também estar na rua, estar com essas pessoas, oferecendo serviços até mesmo para aqueles que não queiram se tratar. Senão, corremos o risco de fazer algo muito visível, porque limpamos a rua, entre aspas, tiramos da visibilidade essas pessoas, mas o problema continua existindo.”


Professora Gloria Lima

Mestra FND em Direito Civil e Introdutora da disciplina Criança e Adolescente

“O ECA consiste em norma especial, cuja premissa básica é a preponderância do interesse da criança e do adolescente sobre qualquer outro. O Brasil adotou a Escola da proteção integral a despeito da posição social e econômica desses indivíduos, o tratamento deve ser igualitário.

Por conta disso, a norma em apreço, Lei 8069/1990, dispõe sobre os direitos fundamentais de seus sujeitos, a criança e o adolescente, impondo à família, àsociedade e ao Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, dentre outros.

Sobre a internação compulsória para menores usuários de crack implementada pela Prefeitura com apoio do Ministério Público, a lei atende induvidosamente a finalidade proposta pela própria constituição Federal no artigo 227, que delibera, no parágrafo 3º inciso VII, o direito à proteção especial, que abrangerá os seguintes aspectos: ‘programa de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins’.

A decisão de internação compulsória, por evidente, não se fará divorciada dos procedimentos impostos pela norma, todos os requisitos necessários exigíveis ao procedimento desejado serão cumpridos por equipes multidisciplinares, que atuam junto ao juizado da infância e da juventude.

Necessário esclarecer que o usuário de crack não é “menor infrator”. O uso não se constitui ato infracional, considerado pelo ECA. Portanto a utilização desse expediente como mote para derrubar a medida inspirada pelo Poder Público e acatada pelo Ministério Público não convence, ao contrário, o Poder Público deve proceder à medida com viso a obstar a prática irreversível do uso deste entorpecente, já batizado como a droga da morte. Assim, a internação aqui não se daria como medida punitiva e, sim, curativa, o tratamento necessário à saúde e restaurador da cidadania.

É imperioso destacar que as crianças e/ou adolescentes, pelo próprio comportamento suicida, são pessoas que estão em permanente risco social, descrito pelo Estatuto em seu artigo 98, que insta a intervenção das autoridades em comento. O texto diz “as medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: I - Por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II- Por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis. III - Em razão de sua conduta.’

Por serem crianças, ou adolescentes, não têm capacidade jurídica, aqui, para concordarem com o tratamento ofertado. São crianças e adolescentes legados à própria sorte, o Estado tem o dever de suprir a autorização dos pais. Elas são frequentadoras das áreas de risco e, por isso, devem ficar sob a tutela do Estado, que tem a obrigação de garantir  sua integridade física moral, psicológica, por serem portadores de patologia social.

Dessa forma, a medida assumida pelo Estado, além de revelar atuação efetiva e concreta do poder executivo, pertine a esfera de sua atuação, não viola norma jurídica, porque vai ao encontro da intenção do legislador consubstanciada no cumprimento do princípio absoluto do interesse do menor.

Vale aqui parabenizar a posição corajosa do Município, que alcançou de maneira eficiente e concreta a mensagem do legislador menorista, e que a liberdade concedida à criança e ao adolescente, encontra limites quando a sua própria vida, dignidade e segurança em contraponto devem ser garantidas, entendeu também que a norma positivada tem que ser interpretada de maneira extensiva, sem radicalismos exacerbados e dogmatismos que impedem o enfrentamento de novas questões que emergem em função da evolução da sociedade.

Vale homenagear o Ministério Público pela intervenção legítima, como também saldar o aval da Juíza da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, ao cumprir seu papel como magistrada, porque através de seu consentimento corroborou a viabilização do cumprimento dos ditames legais.