Ponto de Vista

Racismo nas universidades

 

 

Mariana Finelli

 

Alunos da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) fizeram um abaixo-assinado na internet pedindo o afastamento de um professor acusado de racismo pelos estudantes do curso de Engenharia Química. Segundo eles, o professor vinha sistematicamente agredindo um colega de turma, o nigeriano Nahu Ayuba. 

O abaixo-assinado diz que "na entrega da primeira nota o professor não anunciou a nota de nenhum outro aluno, apenas a de Nuhu, bradando em voz alta que ‘tirou uma péssima nota’; por mais de uma vez o professor interpelou nosso colega dizendo que deveria ‘voltar à África’ e que deveria ‘clarear a sua cor’;em um outro trabalho de sala o professor não corrigiu se limitando a rasurar com a inscrição “está tudo errado” e ainda faz chacota com a pronúncia do nome do colega (...); disse que o colega é péssimo aluno porque ‘somos de mundos diferentes’ e que ‘aqui, diferente da África, somos civilizados’  inclusive perguntando ‘com quantas onças já brigou na África?’ "

O acusado, professor José Cloves Verde Saraiva, se retratou publicamente pedindo desculpas pela “interpretação, certamente, dúbia do aluno nigeriano Nuhu Ayuba”, conforme a nota divulgada pelo professor. Além da abertura de um processo administrativo dentro da universidade, a reitoria da UFMA solicitou apuração do caso por parte do Ministério Público.

Para o professor Marcelo Paixão, do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), o episódio é um caso extremo que expressa uma atitude racista e discriminatória e, portanto, condenável. No entanto, para o professor, essa não é a principal maneira pela qual a questão racial se apresenta na universidade pública brasileira. Confira a entrevista cedida ao Olhar Virtual:

Olhar Virtual: Como se manifesta o racismo dentro das universidades e instituições de ensino?

Prof. Marcelo: Esse episódio no Maranhão foi um caso extremado de uma insanidade de um professor, uma agressão gratuita a um aluno, e que expressa um ponto de vista dele, evidentemente racista e discriminatório. Mas eu diria que esta não é a principal maneira pela qual a questão racial se apresenta na universidade pública brasileira. É um episódio evidentemente condenável, o professor tem que ser chamado a sua razão, deve ser feito todo o processo de abertura de inquéritos internos da universidade e, se necessário, até externos, até que a universidade delegue se aquilo de que ele é acusado consta nos autos e aplique a devida punição. Mas eu acho que a universidade brasileira tem um problema de um daltonismo que torna ela muito insensível pra uma coisa que ela não poderia mais ser tão insensível. O perfil dos estudantes e dos professores da universidade, seja no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, seja nos lugares onde se tem uma presença negra mais forte, como Salvador, Recife, São Luís, Belém, é predominantemente caucasiana. Andando nos corredores da universidade, a gente vai vendo aquelas turmas que se formaram nos anos 40, 50, 60, 80 e todo mundo tem a mesma cara. A gente não consegue problematizar por que as pessoas consideram isso normal. As pessoas normalizaram uma aberração, e essa invisibilidade e esse processo de adestramento do olhar para entender a homogeneidade de cor ou raça e de gênero passa a ser um padrão normal, e é isso que me assusta. Dentro da universidade, essa é a principal questão, não no sentido que isso venha a desqualificar o que aconteceu nesse episódio específico do Maranhão, aquilo ali é um acinte à consciência média. O problema da universidade brasileira é que ela precisa se re-equacionar de tal maneira que ela possa expressar melhor, no seu corpo discente, aquilo que vem a ser o próprio povo. Na medida em que esse processo de correspondência não se verifica, o principal prejudicado é a própria universidade brasileira, que certamente está desperdiçando milhares de jovens, que seriam igualmente capazes a estar freqüentando seu meio, e se tornando futuros docentes.

Olhar Virtual: Nossas instituições de ensino estão aptas para lidar com a questão do racismo?

Prof. Marcelo: Eu acho que a universidade busca evitar esse debate. Ela não conseguiu até hoje superar essa questão, considerando que desde a abolição no Brasil já se vão quase 115 anos, e considerando que as universidades brasileiras vêm ali dos anos 40. A gente tem uma dificuldade muito grande de construir uma problematização sobre isso, estando a universidade inserida no seio da sociedade brasileira. Então a universidade brasileira vai herdar esse DNA da sociedade que naturaliza os papeis sociais de pessoas de aparência distintas no interior da nossa sociedade. Nós estamos numa universidade que nos ensina o princípio cartesiano, do duvidar de tudo, e parece que, nesse plano, a dúvida não ocorre. O plano cartesiano se afasta e entra em jogo uma inaceitável compreensão diante dos fatos sociais, que é a dificuldade que a população negra nesse país enfrenta e que é absolutamente coerente, seja com a historia mais passada, seja com a historia mais presente desse país. Acho que a universidade brasileira pode exercer um papel de vanguarda, da mesma forma que a universidade herda o DNA da sociedade, a universidade várias vezes se colocou na vanguarda de processos políticos importantes dentro da nossa sociedade. Eu não vejo por que, nesse caso, ela deveria ficar para trás. A UFRJ agora deu um grande passo com essas medidas recentes do Conselho Universitário (Consuni) de adoção das cotas sociais, pra que a gente comece a corrigir esse problema. O que eu acho positivo da universidade nesse processo é que, bem ou mal, não houve divergência em relação à necessidade de ter as ações afirmativas, agora temos muito o que avançar.

 

Olhar Virtual: Como combater o racismo dentro das universidades? E como prevenir situações como essa?

Prof. Marcelo: As ações afirmativas, na medidas em que elas contribuam para diversificar a universidade do ponto de vista social e da consciência crítica das pessoas, eu acredito que vão trazer uma inflexão importante para as pessoas, que vão ser mais convidadas a produzir um debate. Porque em uma universidade muito homogênea é como se o problema não existisse. Essa forma de pensar as coisas também é produto da própria homogeneidade. Como eu não tenho o outro do meu lado, o problema do outro não existe. Na medida em que você diversifica a universidade vai significar que o problema de um será compartilhado pelo outro, é o princípio republicano. Viver em uma sociedade republicana significa que todos compreendemos os problemas uns dos outros e vamos procurar, enfim, enfrentá-los coletivamente, para darmos soluções positivas. E eu acho que o primeiro passo é esse: a democratização do acesso à universidade, trazendo para dentro dela um número maior de pessoas pobres, vindas da escola pública, negras. Penso que isso vai contribuir para a universidade se repensar, não apenas porque se torna mais diverso o corpo discente e talvez o docente, mas pelo fato de que a universidade, na medida em que adota essa diversidade, adota também os problemas desses grupos todos que hoje, em sua maioria, estão invisíveis para nossa sociedade, para serem debatidos. Também é importante colocar que é necessário repensar os currículos da nossa universidade. Temos poucas disciplinas que abordam o tema da diversidade. Nem falo da questão apenas racial, falo das questões mais gerais também, as questões sociais, que dizem respeito à desigualdade, pobreza, violência. A gente ainda tem um modelo de ensino que é pouco adequado para pensar esses fenômenos sociais. Deveríamos ter mais seminários, momentos coletivos para debatermos os dramas que afligem a população brasileira, da qual o racismo faz parte. E, na minha opinião, a melhor forma de enfrentar um problema é discutindo que ele existe.

Olhar Virtual: O debate sobre cotas raciais para o acesso à educação pública muitas vezes foge do campo da argumentação para claras demonstrações de preconceito e racismo. A implementação das cotas raciais não poderia deixar esse racismo mais evidente e dar espaço para atitudes de agressividade como a apresentada anteriormente?

Prof. Marcelo: A esse respeito, a gente tem que lembrar o seguinte: será que o machismo cresce quando as mulheres se organizam pra lutar pelos seus direitos? Eu acho até que, em algum momento, aquelas várias práticas machistas vão ficando tão absurdas, na medida em que o movimento feminista vai avançando, que pode se dizer que a violência aumentou. Mas, na verdade, a violência sempre esteve onde ela está, o que aconteceu é que a sociedade mudou sua cabeça e o que antes era muito normal passou a ser considerado uma aberração. A mesma coisa acontece com as lutas das parcelas discriminadas da sociedade. A agressividade sempre existiu. Eu acho que as pessoas quando diante desse tema demonstram maior agressividade, aparentemente elas estão preocupadas com a perda dos privilégios. Elas ficam então zangadas porque elas acham que determinados direitos que elas têm são direitos quase que hereditários - parece que nasceram das capitanias hereditárias aqui no Brasil -, e que se você fizer qualquer questionamento a esse tipo de prerrogativas, de privilégios, elas ficam muito incomodadas. Mas uma sociedade não pode ficar refém dos seus zangados. Uma sociedade tem que produzir consensos sociais progressistas, produzir acordos que possam democratizar o acesso a oportunidades e direitos sociais e, a partir dali, seguir em frente. Sempre vão surgir os descontentes, ou até aqueles mais agressivos e radicais, mas eu espero que eles sejam uma minoria e que a grande maioria das pessoas vá, em algum momento, concordar em relação a determinadas medidas, porque elas vão compreender que são necessárias e justas.

 

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