Em pleno século XXI, a prática do trabalho escravo é
uma realidade que assola milhares de brasileiros no campo e na cidade.
Na busca por melhores condições de vida, trabalhadores
de diversas partes do país se iludem com promessas enganosas
de bons salários e emigram, deixando de lado sua família
e amigos.
Segundo o Padre Ricardo Rezende Figueira, antropólogo e pesquisador
do GPTEC (Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo), do
CFCH/UFRJ, um dos maiores nomes da militância contra o trabalho
escravo no Brasil, a escravidão por dívida e a emigração
são as duas principais características do escravismo no
Brasil.
“O trabalhador está no seu lugar de origem e recebe uma
proposta para trabalhar em outro local, com promessas de bons salários.
Os moradores dos bolsões de pobreza, pessoas com dificuldade,
são facilmente seduzidos. No entanto, todos os custos com transporte,
hospedagem e alimentação são revertidos em dívida
e pagos com o próprio trabalho. Longe de seu local de origem,
essas pessoas ficam mais vulneráveis aos abusos dos patrões
e tornam-se mais facilmente vítimas. O trabalhador quase sempre
atua em outro estado. Quando não, nunca na mesma cidade”.
Se na área rural a maioria dos escravizados é de outros
estados e municípios, na área urbana eles podem vir de
fora do país. Africanos, asiáticos, latinos, principalmente,
bolivianos e peruanos, estão entre os estrangeiros aliciados
em áreas metropolitanas no Brasil. Além de estarem fragilizados,
por se encontrarem fora de seu território, a situação
irregular de imigrantes os deixa mais imobilizados dentro da dinâmica
do trabalho escravo; caso denunciem que são vítimas do
crime, acabam sendo expulsos do país.
“Nos Estados Unidos, a justiça do trabalho ou criminal
sendo informadas dessas denúncias não comunicam ao departamento
de migração sobre a situação irregular dos
imigrantes. Isso significa que não serão necessariamente
expulsos como no caso brasileiro. O trabalhador estrangeiro sente-se
mais seguro para denunciar”, afirma Ricardo.
Outro aspecto do trabalho escravo no Brasil observado por Figueira é
uma aparência de “legalidade” que existe por trás
da prática.
“Existe para a vítima uma ‘legalidade’, a da
dívida, que ele é forçado a acreditar que tem com
o patrão. Ele só denuncia quando acha que houve alguma
coisa que ultrapassou os limites do admissível. Se fugir, se
sente um criminoso. E o pior é que essa visão é
compartilhada, muitas vezes, por autoridades”.
Apesar das dificuldades que existem para o combate ao trabalho escravo
no país, os últimos 30 anos trouxeram avanços consideráveis
para o seu êxito. Segundo Ricardo Rezende, nesse período
o número de informações sobre os escravizados aumentou,
mesmo ainda sendo incompleto. Hoje, a fiscalização é
maior, as Delegacias Regionais do Trabalho, em geral, deixaram de ser
coniventes e a criação do Grupo Especial de Fiscalização
Móvel, do Ministério do Trabalho, realiza um trabalho
importante para a erradicação dessa prática.
“Na década de 70, apenas a Comissão Pastoral da
Terra combatia o escravismo. Hoje, a fiscalização é
maior, a sociedade e um conjunto de organizações participam
desse embate e temos um conhecimento maior sobre o assunto. Porém,
ainda falta muito a ser feito. Precisamos de mais informações
e a fiscalização das denúncias ainda é muito
lenta”, afirma o padre.
Dentre as principais medidas, que vem sendo feitas para a erradicação
do escravismo no Brasil, destaca-se a Campanha Nacional de Erradicação
do Trabalho Escravo, que vem realizando uma série de encontros
e seminários nos estados da federação, principalmente
no Piauí onde a iniciativa encontra-se em estágio mais
avançado. Entre as organizações que se destacam
aí se encontram a Comissão Pastoral da Terra e a Organização
Internacional do Trabalho. Além dela, existe uma ação
do Ministério Público do Trabalho que visa à aplicação
de multas por danos morais coletivos aos escravocratas. Entretanto,
a medida que é mais aguardada não só por Ricardo,
mas por todos que militam contra o trabalho escravo é a aprovação
do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) Ademir Andrade, que prevê
a perda da terra para quem utilizar a mão-de-obra escrava. Esse
projeto de emenda constitucional, que leva o nome do senador, foi aprovado
no Senado há uma década, mas ficou anos em tramitação
na Câmara. Hoje, depois de sofrer uma série de modificações
nesta casa, ainda precisa ser votado não apenas na Câmara,
mas novamente no Senado.
“Voltamos, à estaca zero, à 1992. A bancada ruralista
impede a aprovação da PEC. E sabemos que a escravidão
só vai acabar quando o bolso de quem a faz for atingido”.
* Pisando fora
da própria sombra. A escravidão por dívida no Brasil
contemporâneo do Padre Ricardo Rezende Figueira, lançado
no ano passado e indicado ao prêmio Jabuti.