Preservando a memória

     

Opinião do Afonso Marques dos Santos, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais:

A questão da propriedade privada é muito mal entendida entre nós, pois há uma tendência histórica para considerá-la como algo desvinculado do interesse público. O proprietário de um bem está submetido, como todos nós, a regras e limites estabelecidos por uma norma jurídica. A preservação de bens culturais e paisagísticos, através do instrumento do tombamento, é legítima e correta tanto do ponto de vista do Direito Administrativo adotado no país como do ponto de vista sócio-cultural. Os bens materiais são importantes suportes para a memória social e esta, por sua vez, se constitui num direito coletivo que deve ser assegurado pelo Estado sempre que for acionado.
Contudo, não considero que a instituição do tombamento deva ser banalizada. Os critérios de relevância histórica e artística mudaram nas últimas décadas, acompanhando a democratização da Sociedade brasileira. Uma vila operária ou de pescadores, um antigo quilombo, instrumentos de trabalho, o artesanato popular, uma agremiação carnavalesca, um local de culto religioso, uma fábrica ou um espaço de valor afetivo para a população, entre outros bens, passaram a ter tanto interesse e valor como os registros da vida burguesa ou aristocrática, os palácios, os templos notáveis e as fortificações.
Ao lado dos lugares de memória do exercício do poder econômico, político, militar ou religioso, outros lugares de uma memória plural e democrática vão sendo inscritos nos livros de tombamento. A cultura material dos trabalhadores e as manifestações artísticas populares passaram a ser consideradas como dignas de preservação, nesta renovação do conceito de memória histórica e cultural. Mas é preciso que o processo passe por cuidadosos e bem fundamentados estudos multidisciplinares dos organismos voltados para a proteção do patrimônio cultural.
É o direito social à memória que deve presidir a ação pública de preservação. No caso brasileiro, entretanto ainda há um enorme descaso pela conservação dos bens culturais herdados. Temos verdadeiras preciosidades arquitetônicas relegadas ao esquecimento, como é o caso da Igreja de Nossa Senhora da Saúde, do século XVIII, localizada na zona portuária; os antigos chafarizes da Cidade, na rua da Gloria, Riachuelo e Frei Caneca, abandonados e depredados; prédios notáveis como o antigo Hospital São Francisco de Assis, quase em ruínas, ou as antigas oficinas ferroviárias do Engenho de Dentro, com estruturas em ferro importado. Isso para não falar do estado de abandono de logradouros e estátuas no Centro da Cidade, como é o caso dos nossos primeiros monumentos cívicos, as estátuas de D. Pedro I, na Praça Tiradentes, e a de José Bonifácio, no Largo de São Francisco de Paula. Mas há muito mais a ser preservado e conservado, como a documentação e a memória histórica de empresas, clubes, Escolas de Samba, instituições educacionais e a documentação dos órgãos oficiais da administração pública.
A verdade é que o nosso sistema cultural ainda é precário e cheio de indefinições. Uma cidade sofisticada como o Rio de Janeiro ainda não tem, 28 anos após a fusão, uma Biblioteca Pública Municipal, que coordene a sua rede de bibliotecas populares. Bairros importantes como Cascadura e Madureira não têm biblioteca pública, enquanto a rede de Centros Culturais é precária e concentrada no Centro e na Zona Sul. O Rio de Janeiro não tem uma pinacoteca municipal, nem um Museu da Cidade a altura da sua história e importância. Há muito a ser feito!


Opinião do professor Rosina Trevisa, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo:

Muitas vezes as notícias veiculadas de "tombamento" de determinadas áreas do RJ não significam que as áreas em questão estão tombadas e teoricamente não poderiam ser alteradas. Na realidade, o município delimita as Áreas de Preservação Ambiental e Cultural (APAC), que são áreas de interesse de preservação por serem áreas que contêm edificações com tipologias arquitetônicas típicas de uma determinada época representativas da história do bairro em que estão inseridas.
A definição dessas áreas não significa que as mesmas não podem ser modificadas, que devem ficar “congeladas”, mas sim que as intervenções deverão respeitar alguns critérios próprios visando à preservação do conjunto arquitetônico e urbano da área em questão.
Quanto ao tombamento, o direito de propriedade é mantido. Na realidade, as pessoas não gostam de que seus imóveis sejam tombados por não saberem da importância deste ato. O tombamento em outras regiões, como em cidades de países europeus, significa que a edificação possui um valor especial, o que a torna mais importante. No entanto, por uma questão de cultura nacional, no Brasil os imóveis tombados tendem a ser desvalorizados. As pessoas acham que um imóvel tombado não pode ser modificado, mas não é bem assim, as revitalizações são possíveis e até bem vindas, visto que só é possível preservar um imóvel se ele tiver uma função útil e adequada.
É necessário que se saiba que um imóvel tombado, que é de interesse de preservação, caso mantenha características originais e esteja em bom estado de conservação, está isento do IPTU.
Quanto à escolha dos locais das APACs, quero acreditar que os interesses sejam técnicos (históricos e/ou arquitetônicos) e não comerciais. Até porque as intervenções nestas áreas passam a ser mais restritivas.