Edição 265 02 de setembro de 2009
No último dia 28 de agosto, o Brasil comemorou 30 anos da Lei da Anistia. Promulgada em 1979, a Lei nº 6.683 promoveu a reintegração dos brasileiros punidos pelo regime militar nos anos anteriores e representou um importante passo na direção da abertura política do país. Professores, estudantes e intelectuais engajados puderam retornar ao Brasil e voltaram a exercer seus direitos de cidadãos.
Fruto de intensa mobilização da sociedade brasileira, a Lei da Anistia não beneficiou todos os perseguidos pela Ditadura, entretanto. Muitos servidores demitidos pelo governo não foram reintegrados, por exemplo. Para diversos especialistas, a Anistia não foi completamente consolidada. No Brasil, ao contrário do que vem acontecendo na Argentina e no Paraguai, os arquivos da repressão permanecem lacrados e um sem-número de vítimas prejudicadas durante “anos de chumbo” não recebeu qualquer indenização.
Em 2001, foi criada a Comissão da Anistia com o objetivo de avaliar os pedidos de indenização, mas a Lei nº 6.683 ainda suscita discussão. Para alguns, a Lei da Anistia, por ser ampla, geral e irrestrita, também seria passível de perdoar os atos de tortura e terrorismo praticados no regime militar. Para outros, no entanto, o exercício pleno da democracia passa pela punição desses crimes.
A Lei da Anistia completa 30 anos em meio a um potencializado debate sobre a necessidade de sua revisão. Para fomentar a discussão, o Olhar Virtual conversou com José Ribas, professor da Faculdade de Direito da UFRJ. Confira a entrevista na íntegra.
Olhar Virtual: Qual a importância histórica da Lei da Anistia?
José Ribas: A importância histórica da Lei nº 6.683/79 é dupla. Em primeiro lugar, o citado ordenamento normativo traduz uma luta política contra as violências políticas e os crimes praticados pelo regime de 64 contra as forças que lhe opuseram. Num segundo plano, a mencionada Lei da Anistia pode ser analisada sob a ótica de Jon Elster, que em sua obra Closingthe Books conceituou a justiça transitional ou Justiça retributiva. Ela diz respeito ao momento em que a sociedade se reencontra num processo conciliatório após a apuração dos crimes praticados por um determinado regime e o resgate da memória dos acontecimentos. Foi o que aconteceu após o "apartheid" na África do Sul, com as lideranças principalmente do Bispo Tutu, nas comissões de verdade e conciliação. Na África do Sul, predominou a orientação "Perdoar sim, esquecer jamais". No dia 22 de agosto de 2009, no Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, houve o registro da passagem dos 30 anos da nossa Lei da Anistia. No Brasil, infelizmente, não houve a justiça transitional como foi delineada por Elster. Não houve julgamento dos que cometeram crimes de Estado como agentes públicos. Não houve justiça transicional, porque não houve resgate da memória desse período.
Olhar Virtual: No ano passado, procuradores da República voltaram a defender que a Lei da Anistia não precisa ser revista. A lei da Anistia precisa ser revista? Por quê?
José Ribas: Sim, precisa ser revista, principalmente no tocante ao parágrafo primeiro do artigo 1º da Lei 6.683/79, que menciona quem praticou crimes conexos com motivação política. Esse dispositivo não pode, por exemplo, anistiar os responsáveis por crimes de Estado. Aqueles que praticaram essa forma delituosa feriram normas de sistemas regionais e internacionais de proteção de Direitos Humanos.
Olhar Virtual: A Declaração Universal dos Direitos Humanos define que o crime de tortura é imprescritível, e nossos vizinhos na América Latina já avançaram significativamente na luta contra ele, sobretudo a Argentina e o Uruguai. Por que o Brasil está tão atrasado em relação a isso?
José Ribas: Sociedades como Argentina e Uruguai, principalmente a atual Corte Suprema argentina, têm plena consciência da importância e da necessidade de efetivar o sistema interamericano de Direitos Humanos. Perceba que, mesmo depois de o Brasil assistir a crimes praticados por agentes políticos do regime de 64, o Supremo Tribunal Federal ainda tem resistência na aplicação de mecanismos de Direitos Humanos. No dia 17 de julho de 2009, por exemplo, o ministro Celso de Mello, no exercício da Presidência do STF, recebeu o pedido de cooperação judiciária do Tribunal Penal Internacional. Ele determinava que, caso o presidente do Sudão, incriminado por crime de genocídio em Dafour, passasse pelo território nacional, deveria ser preso. A Constituição Federal de 1988 é claríssima e o Tribunal Internacional Penal tem plena jurisdição no Brasil. O ministro Celso de Mello, apesar dessa norma cristalina, colocou, citando doutrina, dúvida da aplicação do citado estatuto em determinados aspectos. Assim, a passagem dos 30 anos da Lei da Anistia, apesar de sua incompletude em relação aos crimes praticados pelos agentes públicos do regime de 64 e da questão da memória, serve para advertir que a luta pelos direitos humanos deve prosseguir no Brasil.
Olhar Virtual: Quando aprovada, a Lei da Anistia atingiu estudantes, professores e cientistas afastados das instituições de ensino e pesquisa nos anos anteriores. Entretanto, o reaproveitamento de servidores civis e militares ficou subordinado à decisão de comissões especiais criadas no âmbito dos respectivos ministérios para estudar cada caso. Que outras restrições possui essa lei?
José Ribas: Creio que as restrições maiores foram para os servidores e militares que não foram promovidos à patente dos seus colegas de turma. Temos o caso da promoção do capitão Lamarca. Na UFRJ, temos o caso emblemático do professor Evaristo Moraes Filho, que, em documento ao então reitor da universidade, com muita dignidade e revolta, recusou os termos da anistia. No documento, ele registrou a sua perplexidade de ser anistiado de um crime que ele não sabia ter cometido. Denunciou a ilegitimidade de sua aposentadoria por tempo de serviço proporcional praticado pelo regime de 64 na UFRJ. Foi um ato de coragem.
Olhar Virtual: Alguns estudiosos são contrários às punições aos torturadores e afirmam que a sociedade ganhará mais se os arquivos da repressão não forem abertos. Em que medida a abertura dos arquivos pode prejudicar a democracia brasileira? A impunidade abre precedentes para novos atos de tortura?
José Ribas: A abertura dos arquivos fortalece a democracia. É importante que a sociedade brasileira conheça todas as formas de violência praticadas pelo regime de 64. Lembramos que o segundo número da Revista da Comissão de Anistia terá como dossiê a questão da memória. Quanto à tortura, a impunidade é uma causa do nível de violência existente no Brasil, principalmente do seu aparelho policial. Criou-se uma cultura de violência não controlada e não apurada que é decorrente da ditadura de 64.
Olhar Virtual: A Advocacia-Geral da União (AGU) defende que crimes políticos ou conexos praticados na ditadura, incluindo a tortura, foram todos perdoados pela Lei da Anistia. O senhor concorda com isso?
José Ribas: Não, temos crimes de Estado, temos crimes contra Direitos Humanos, que devem ainda ser investigados e punidos. A Lei de Anistia foi aprovada dentro do regime militar de 64. Tal fato explica esse perfil de que teria havido uma "anistia recíproca". Não houve. E mais: a Corte Interamericana decidiu que não pode haver autoanistia. O que os militares de 64 procuraram promover com a Lei da Anistia foi o que o sistema interamericano de direitos humanos veda.
Olhar Virtual: O presidente Luiz Inácio Lula da Silva encaminhou, em maio, um projeto de lei ao Congresso Nacional que facilita e regulamenta o acesso às informações públicas do governo federal. Durante a cerimônia, o presidente disse que a proposta não significa uma revanche contra o regime militar. Qual a sua opinião sobre o governo Lula e a abertura dos arquivos da repressão?
José Ribas: O governo Lula seguiu a mesma trajetória do Presidente Fernando Henrique na limitação da abertura dos arquivos. Vejam o caso do Araguaia que precisou de decisão judicial e de pressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para a busca dos mortos do Araguaia.