Edição 255 23 de junho de 2009
A cada 15 segundos uma mulher é vítima de algum tipo de agressão doméstica no Brasil, segundo dados da Fundação Perseu Abramo. A estatística é alarmante. No entanto, desde que a Lei Maria da Penha entrou em vigor, em 2006, tem crescido o número de vítimas que denunciam o agressor. Na grande maioria das vezes, o algoz é o próprio cônjuge. Dados recentes da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres revelam que, se em 2007 foram feitas 20.050 denúncias, em 2008 atingiu-se a marca de 24.523 relatos de agressão.
Para comentar os diversos aspectos da violência doméstica contra mulheres, o Olhar Virtual entrevistou a especialista no assunto Lilia Pougy, coordenadora de Pós-Graduação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ e supervisora do Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-CR), projeto do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-Dh).
Legalmente, o que configura violência contra a mulher? Ela vai além da agressão física?
Lilia Pougy: É todo tipo de violência cometida contra a mulher, em suas numerosas manifestações. Por exemplo, a violência psicológica e a ameaça. Há toda uma tipologia criminal e tudo aquilo que é classificado no Código Penal, Criminal e Civil coexiste também com a violência simbólica. No Brasil a gente utiliza a definição da Convenção de Belém do Pará, que envolve a violência na forma de agressão física e psicológica também.
Como se dá o processo de denúncia em caso de violência psicológica?
Lilia Pougy: É muito difícil conseguir prova material dessa violência psicológica, mas é possível. O caminho no sistema de justiça criminal é o seguinte: você vai a uma delegacia especial de atendimento à mulher, faz a denúncia, que é recepcionada por um escrivão ou escrivã, e vai para um delegado ou delegada para ratificar a tipificação penal necessária. Ali, no registro de ocorrência, abre-se um processo no nível da delegacia, que é o inquérito policial, instruído ou não depois de ouvidas as partes e testemunhas. A materialidade da violência psicológica é muito difícil e é definida ou não quando a denúncia vai ao juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher
Segundo dados recentes da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o número de denúncias tem crescido. Isso significa a maior conscientização e segurança quanto aos dispositivos penais ou o aumento das agressões?
Lilia Pougy: Existem muitas leituras. Quanto mais equipamentos sociais que não deixem a violência contra mulher impune, mais ela é visibilizada para todo mundo. As relações de gênero envolvem sempre um contexto concreto e relacional, em que os sujeitos que estão experimentando a violência estão disputando poder. Para além da relação do João e da Maria que resolveram brigar, é preciso entender que eles estão imersos em uma sociedade contraditória, com relações desiguais, que alimenta e fomenta a violência. Embora tenha havido aumento dos casos denunciados, o foco hoje das políticas para as mulheres é destinado à criação de Centros de Referência de Atendimento à Mulher, que são lugares de referência na trajetória da mulher para romper com esse ciclo de violência.
Como funcionam esses centros de referência?
Lilia Pougy: No centro de referência, a mulher encontra apoio jurídico, social, psicológico e pedagógico para criar condições para que ela mesma seja sujeito na ruptura da sua trajetória de violência. Não adianta a gente falar em conscientização, porque não é um agente externo que conscientiza a mulher. A mulher em situação de violência sabe mais do que ninguém quais são as medidas que devem ser tomadas para o seu bem-estar e sua resistência à violência contínua. Então, para além de uma conscientização, há que se criar condições para que ela seja a protagonista dessa história de ruptura. E muitas vezes ela decide não romper.
Por que muitas dessas mulheres decidem não romper com o ciclo de violência doméstica, não denunciando seus agressores?
Lilia Pougy: Esse é um fenômeno muito delicado. Partilhar um projeto de vida com alguém, construir isso e sofrer uma ruptura em função da violência deve ser uma coisa muito complicada. Há toda uma dependência, que não é só econômica, mas psíquica, emocional e familiar. O lugar da mulher na sociedade, embora tenha sofrido uma transição muito grande desde o final do último século, é desigual ao lugar do homem. Um exemplo é na própria universidade. Basta ver o número de professores titulares homens e o número de mulheres. Preponderantemente, nas universidades federais são homens que ocupam os lugares de poder, como a reitoria.
O nível social e de instrução interfere na decisão de denunciar ou não o agressor?
Lilia Pougy: Não. Ele atinge qualquer classe social, embora o enfrentamento seja distinto. As mulheres de classe média alta procuram a terapia, grupos de suporte no nível delas, diferentemente das mulheres de baixa renda, que procuram os centros de referência e a denúncia nas delegacias. Muitas vezes, essa mulher que faz uso da denúncia nas delegacias especiais quer tão somente uma intermediação do poder público em sua relação conflituosa. Mas independentemente da expectativa da mulher, a violência doméstica é crime e há medidas protetoras dirigidas a ela a partir da Lei Maria da Penha.
Por que, muitas vezes, as mulheres que denunciam retiram a queixa na delegacia? O que acontece depois com essas mulheres e os agressores? Existe algum monitoramento de casos como este?
Lilia Pougy: Essa coisa de retirar a queixa é uma abstração, não existe isso. Embora, nas delegacias, na hora de registrar o acontecido, você assine um termo, se você vocalizou ao agente público o acontecido, não há como voltar atrás. O que acontece é que muitas vezes o agente público fica querendo resolver ali e fazer uma conciliação justificando alguma coisa que é injustificável. Mas não há a retirada da queixa, ela é arquivada e pode não haver a efetivação.
Além da imagem de vítima, a mulher agredida muitas vezes é vista como cúmplice do agressor, como conivente com a situação de violência. Como a senhora vê isso?
Lilia Pougy: A mulher está enredada nesta rotina de violência protagonizada por ela, pelo agressor, pelos filhos e pelos entes que estão no seu entorno. Há uma tendência da sociedade em geral de julgar moralmente essas mulheres. As pessoas dizem coisas como “Ela gosta de apanhar, está há dez anos levando”. É preciso pensar o contrário: o que podemos fazer para fortalecer a mulher que está nessa situação? Será que participar de um projeto de empreendedorismo não pode restaurar a autoestima dessa mulher, que está lá embaixo? A baixa autoestima é uma tendência entre tais mulheres. Será que não há nos serviços de saúde profissionais meios capazes de identificar aquela mulher poliqueixosa, com sintomas difusos e “doença nervosa”? Uma mulher que sofre violência doméstica apresenta esses sintomas. Então, a pergunta é: o que eu, agente público, estou deixando de fazer para capturar a mulher e fazer com que ela goste um pouco mais de si própria?
O que o Nepp tem feito para combater a violência doméstica contra a mulher?
Lilia Pougy: Nós temos o Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa (CRMM) e o próprio Centro de Referência da Mulher (CRM), o “Centrão”. O CRMM é um projeto-piloto para implementar novas “tecnologias” no atendimento à mulheres em situação de violência. Nós temos o conforto de, no ambiente da universidade, experimentar, através de pesquisa, ensino e extensão, novas modalidades de enfrentamento da violência. Dentro do posto de saúde e do nosso prédio, temos numerosas atividades. Além de formar estudantes que serão profissionais com essa perspectiva de gênero e direitos humanos, temos diversos projetos e oficinas que visam alterar a baixa autoestima das mulheres. É um atendimento ininterrupto, de segunda a sexta, no horário de funcionamento do posto de saúde. Contamos também com a participação dos agentes de saúde que desenvolvem o Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que nos dão notícias das mulheres que não podem chegar ao posto por algum motivo. A contrapartida da universidade, nesse convênio com o SUAS, é a criação de um quadro próprio. Já foi aberto um concurso e entraram duas assistentes sociais com carga horária de 40 horas. Temos psicólogas e agentes de cidadania desenvolvendo atividades que só nós desenvolvemos. Embora os centros de referência sejam uma política adotada em todo o Brasil, só nós fazemos desta forma, diferentemente dos demais; nós garantimos a sustentabilidade mínima. Estamos formando também quadros para o Centrão, que deve ser inaugurado até o fim do ano para ampliar essa área de abrangência e sensibilizar a todos sobre essa questão.
O CRMM possui previsão de expansão de seu modelo como centro de referência?
Lilia Pougy: Com certeza, a replicabilidade é uma meta. A universidade tem que estar em conjunção com a sociedade neste enfrentamento, não pode ficar encastelada. Tentamos ampliar o sentido da violência contra a mulher como violação dos direitos humanos.
Como a senhora avalia a política nacional de enfrentamento da violência contra a mulher? O Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, lançado pelo governo federal em 2007, tem produzido diferença?
Lilia Pougy: O pacto tem um projeto político e está conseguindo angariar recursos para as políticas para mulheres. Na lógica federalista, o nível central tem um conjunto de atribuições macropolíticas e o nível local é responsável pela implementação. Então há que se ter um convênio com cada uma das secretarias estaduais e com os municípios. Isso tem sido feito. A meta para 2008 era a criação de uma rede de atendimento. Uma rede mínima de atendimento é composta pelo centro de referência, pela delegacia, pelo juizado e pelas casas-abrigo. Isso dá suporte às mulheres que desejem tentar romper com o ciclo de violência. Agora, com a intersetorialização das ações, há uma repartição dos recursos da União para o enfrentamento da violência contra a mulher através de programas como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
O CRMM e o CRM possuem alguma ligação com o Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres?
Lilia Pougy: O CRMM está em consonância com o pacto e concorre a propostas do PAC, de onde já recebeu recursos. Só conseguiu esses recursos porque há um projeto com direcionamento teórico e político. Se não tivesse, seria um amontoado de equipamento sem direção política. Uma das noções distintivas do CRMM e do CRM, em face dos demais do Brasil, é que há um projeto teórico político, uma orientação.
Já é possível saber se a Lei Maria da Penha tem produzido efeitos?
Lilia Pougy: Com certeza, a começar pelo Poder Judiciário, que leva muitos sustos (risos). As instituições ainda são muito conservadoras. No imaginário do senso comum a família é o lugar de segurança e, no caso da violência contra a mulher, a família é o lugar de perigo. A violação de direitos humanos é uma marca da sociedade brasileira, sobretudo entre os entes do Estado, porque nós não temos uma tradição de conquista dos direitos, achamos que os direitos nos foram concedidos. A Lei Maria da Penha chega e diz que é crime a violência contra a mulher, que ela tem direito a medidas protetoras e que é dever do agente público prover tais medidas. Isso é uma coisa maravilhosa.
Recentemente, entidades que atuam em defesa da proteção da mulher divulgaram uma nota de repúdio ao projeto do novo Código Penal que incorpora em seu texto a Lei 9.099. Segundo essas entidades, a lei revogaria todos os dispositivos penais conquistados pela Lei Maria da Penha. Qual a sua avaliação sobre o projeto do novo Código Penal em relação à Lei Maria da Penha?
Lilia Pougy: A Lei 9.099/95 trata dos Juizados Especiais Cíveis. Antes da Lei Maria da Penha, os casos de violência contra a mulher eram encaminhados a esses juizados de pequenas causas. O fenômeno de violência contra a mulher era considerado de menor potencial ofensivo, o que é uma excrescência. Primeiro porque colide com a Convenção Belém do Pará, da qual o Brasil é signatário, e que é anterior à Lei 9.099. Nessa convenção foi feita a definição da violência contra a mulher e firmada a responsabilidade dos estados que assinaram aquele instrumento de criar condições para a superação da violência. Ora, se você trata a violência como menor potencial ofensivo, só aumenta as formas de violência. Coloca-se em uma audiência de conciliação uma mulher agredida, que não tem direito a advogado, junto com o agressor, que tem direito a advogado. E ali há um conciliador que, muitas vezes, nem tem a formação na área do Direito, que diz: “Olha, ele estava destemperado.” E quando é muito grave, o conciliador aplica a pena das cestas básicas, retirando do orçamento familiar a punição. Além desse fato, o marido é enviado a grupos de reflexão para homens, como se fosse um castigo. Como se a atividade de pensar e refletir pudesse ser compulsória, através de ordem do juiz. Se a Lei 9.099 for mesmo incorporada, será uma excrescência.
Qual recomendação a senhora daria a uma mulher vítima de violência doméstica?
Lilia Pougy: É fundamental que essa mulher goste de si mesma. Isso é muito difícil, porque uma mulher que é submetida à violência na forma de agressão física já foi submetida à agressão psicológica, na forma de adestramentos. É muito difícil romper com essa trajetória. Por se achar incapaz, ela não consegue se ver como sujeito que vai fazer diferença, por exemplo, na criação dos filhos. A dominação é recorrente nesse processo como um todo. Mas não é só a mulher que sofre dominação. O homem que é autor da violência também sofre. A dominação e um modo de ser e fazer sujeitado são marcas da sociedade. A gente não pode pensar no combate à violência contra a mulher sem pensar em projetos societários. Temos que pensar como é a sociedade que a gente quer: sem desigualdade de gênero, de classe ou raça. Precisamos ter como horizonte uma outra sociedade que não seja essa que estimula tantas desigualdades. O que será que cada um de nós, inclusive essa mulher que sofre violência, está fazendo por uma outra sociedade? Precisamos pensar em uma forma de interação entre os sujeitos através da solidariedade pela raça humana.