Edição 235 6 de janeiro de 2009
Em outubro próximo, a Constituição Federal Brasileira completa 20 anos de vigência. Promulgada após o marco histórico de duas décadas de fim do regime ditatorial, a Carta Magna reflete os anseios que emanavam naquele momento, estabelecendo-se, portanto, como resultado do clamor por uma sociedade mais justa e igualitária, em que os direitos sociais pudessem ser garantidos.
Para avaliar a real efetivação de tais direitos e os avanços que a Constituição trouxe ao Brasil, o Olhar Virtual conversou com os professores Charles Pessanha, que aborda a importância histórica da Carta no processo de consolidação da democracia, e José Ribas Vieira, que enfoca ainda as mudanças operadas no texto constitucional.
As constituições existem basicamente para garantir direitos e determinar a forma de produzir e distribuir o poder dentro de uma sociedade. Nesse sentido, o núcleo essencial de nossa Constituição, “Título II - Dos direitos e garantias fundamentais”; e “Título IV - Da organização dos poderes”, promoveu um grande avanço.
No primeiro caso, a Constituição produziu um aggiornamento em relação aos direitos e garantias. O regime autoritário, decorrente da Ditadura Militar, privou o povo brasileiro dos direitos civis e políticos mais elementares, como o habeas corpus e a plena capacidade de votar e ser votado. A Declaração de Direitos da Constituição de 1988 é, sem dúvida, uma das mais avançadas do mundo contemporâneo. Além da referida atualização histórica, inovou com a introdução de mecanismos de defesa dos cidadãos como o habeas data e o mandado de injunção.
Com relação à organização dos poderes, a Constituição de 1988 é, de todas as Cartas, desde 1824, a que mais se aproximou do desejado equilíbrio: criou três poderes fortes que, necessariamente, precisam dialogar, negociar. Além disso, dotou o país de um moderno e poderoso Ministério Público, responsável pela defesa dos interesses indisponíveis da sociedade, que tem exercido suas funções de forma plena e eficaz, além de uma Advocacia Pública e Advocacia e Defensoria Pública.
É válido ressaltar que o artigo primeiro, parágrafo único, da nossa Constituição dispõe que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta constituição". Com isso, se abre um enorme espaço de participação popular que vem somar-se à representação. Esse princípio foi materializado em uma série de importantes mecanismos de participação popular e controle direto pela cidadania, pouco utilizados nessas duas décadas.
Além dos tradicionais – plebiscito e referendum –, permito-me destacar dois mecanismos, relativos à administração municipal, devido à proximidade das eleições regionais. O primeiro diz respeito à participação direta no processo legislativo, que também existe nos âmbitos federal e estadual. O texto constitucional determina a inclusão, nas leis orgânicas municipais, de dispositivos de "iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através da manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado (art.29, XIII); o segundo, que se relaciona a processos de fiscalização e controle, dispõe que "as contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei" (art.31, 3o).
As regras constitucionais estão dadas. Cabe agora à cidadania fazer o resto. Não basta votar; é preciso controlar o exercício do eleito. Pois, é a primeira vez, em nossa História, que um jovem de 20 anos viveu toda a sua vida dentro de um regime com democracia política, que pode ser resumido rusticamente em votar e ser votado e defender pacificamente suas idéias. Mesmo a democracia de 1946 viu-se mutilada, em 1947, com a proibição da organização do Partido Comunista, e seus similares, e a conseqüente cassação do registro do partido e de seus parlamentares.
É consensual, entre os estudos sobre desigualdades, que estas, nos países democráticos, são menores do que nos países autoritários. Portanto, vive-se melhor nos países democráticos. Por isso mesmo, a consolidação dos direitos sociais é paralela à consolidação institucional e ao aprofundamento da democracia. É uma tarefa da sociedade, dos partidos políticos e dos movimentos sociais.
A crise institucional deflagrada pela operação denominada "Satiagraha" da Polícia Federal com as prisões e solturas do banqueiro Daniel Dantas revela que, na verdade, a Constituição Federal de 1988 consolidou, ao longo desses vinte anos de vigência, certo impasse institucional. Nossa Carta Magna apresenta avanços de caráter positivo que, no entanto, contrapõem-se a medidas paradoxais. O fortalecimento do Poder Judiciário, e notoriamente da Justiça Federal de primeira instância, acarretou, nos anos 90 do século passado, na chamada judicialização da política. Tal processo fluiu outra vez, diante da crise do referido caso Daniel Dantas, entrando em choque com o recente ativismo judicial centralizador do Supremo Tribunal Federal (STF).
Os avanços em nosso documento constitucional são referentes à autonomia e ao reconhecimento do papel de defensor dos interesses da sociedade brasileira conferido ao Ministério Público Federal, que, em ação conjunta ao Judiciário, criou condições para uma atuação mais vigilante da Polícia Federal. Porém, os pontos determinantes para o impasse ao qual me referi constituem-se na relação conflituosa entre a Justiça Federal de primeira instância e o STF, na atuação por demais autônoma e possivelmente geradora de conflitos do Ministério Público e, por fim, no fortalecimento da Polícia Federal, estando esta, porém, subordinada aos caprichos do Poder Executivo Federal.
São recorrentes as reformas realizadas no texto constitucional, e elas ocasionam implicações especialmente no campo da organização econômica e previdenciária. O artigo 195 da Constituição, por exemplo, que garante os direitos sociais no campo previdenciário de forma universalista e generosa foi desmontado nos governos Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva.
O governo FHC trouxe uma noção de público que não se pauta no interesse maior da sociedade brasileira. Ao ressaltar as conseqüências das mais de 56 emendas à Constituição Federal de 1988 nos campos econômico e previdenciário, é bom lembrar que, na realidade, o citado corpo normativo não trouxe muito claro qual era o seu projeto econômico para país. A Constituição não estava preparada, por exemplo, para os efeitos devastadores da atual internacionalização da ordem econômica mundial. Principalmente na última década, houve a denominada Reforma do Estado que atingiu, sobretudo, determinados monopólios de exploração de riquezas naturais. O atual governo federal, por sua vez, não deteve esse processo, apenas contribuiu para o seu agravamento, uma vez que a Reforma de Estado acarretou uma mescla em que o privado se confunde com o público, gerando mais um impasse institucional que se revela nos atuais aparatos de corrupção do Estado brasileiro.
Infelizmente, nesses vinte anos, nosso país retrata um retrocesso na consolidação dos direitos sociais garantidos na Carta e certa parte dos juristas brasileiros colaborou, também, principalmente na parte doutrinária e interpretativa, no tocante aos direitos sociais pela sua não efetivação. O governo Luís Inácio Lula da Silva tentou no seu primeiro mandato (2003-2006) aprovar a Reforma Trabalhista e, felizmente, não houve consenso para possibilitar o desmonte dos direitos sociais entre nós. Os jornais de circulação em 21 de julho de 2008 estampam que o atual governo federal não desistiu de realizar mais "uma reforma previdenciária". A desconstrução da Constituição Cidadã não foi maior apenas em função dos avanços institucionais representados pelo Judiciário de primeira instância e pelo Ministério Público Federal.
É notório que a Constituição Cidadã de 1988, por determinadas razões, não conseguiu avançar em termos de uma real estruturação partidária e de um sistema eleitoral mais democrático. E, a meu ver, dificilmente conquistaremos tais avanços através das reformas políticas. A democracia efetiva virá por meio do fortalecimento dos movimentos sociais. E cabe ressaltar que a UFRJ deve desempenhar um papel central no apoio a esses movimentos, adensando o processo democrático.
Apesar das pressões do governo Luís Inácio Lula da Silva para controlar os movimentos sociais, é neles e nas instituições anteriormente mencionadas que devemos apostar para a defesa de certas conquistas ainda não atingidas. E, por que não apostar que conseguiremos, por meio de lutas sociais, determos os retrocessos político-sociais desses 20 anos?