Edição 279 09 de dezembro de 2009
Até que ponto vai a paixão de um torcedor por seu clube do coração? Pode a racionalidade resistir ao fervor insano dos fãs em sua devoção incondicional à agremiação? O sentimento não tem idade, sexo, cor, muito menos nível econômico, social ou cultural. Quando se trata de torcer, quase sempre, o indivíduo desaparece na massa. Em transe, atua num gesto ritualístico, quase tribal, de autossacrifício ao seu deus de cores vibrantes que exige a subjugação do deus adversário.
O mais recente e evidente capítulo desta devoção aconteceu no último domingo, dia 6. Na ocasião, foi realizada a rodada final do Campeonato Brasileiro de futebol, que consagrou o Clube de Regatas do Flamengo campeão nacional pela sexta vez. Durante a semana que antecedeu a decisão, não havia assunto mais comentado, discutido, exacerbado em todo o país. Após o triunfo rubro-negro, as comemorações continuaram na segunda-feira, deixando o primeiro dia útil da semana com cara de feriado no Rio de Janeiro.
Para garantir um lugar no estádio, quase 15 mil pessoas chegaram a acampar na porta do Maracanã. Os pouco mais de 5 mil ingressos que ainda restavam acabaram em menos de duas horas, provocando a revolta da grande maioria. A reação da polícia foi truculenta, com o uso de cassetetes, sprays de pimenta e balas de borracha. Mesmo quem havia conseguido o bilhete precisava de sorte para chegar em casa a salvo: gatunos agiam livremente nos arredores da arena, à procura das escassas entradas. Uma verdadeira operação de guerra, com um único e incerto objetivo: assistir à vitória do seu time do coração, após 17 anos de jejum.
Uma prova de que a irracionalidade atinge até mesmo os doutos é o presidente da Sociedade Esportiva Palmeiras, Luiz Gonzaga Belluzzo. O renomado economista, com passagens pelo Ministério da Fazenda e pelo governo estadual de São Paulo, primeiro insultou o árbitro Carlos Eugênio Simon por anular um gol da equipe, em partida contra o Fluminense. Depois, conclamou os torcedores do “porco” a “matar os bambis”, em referência aos simpatizantes do São Paulo Futebol Clube. A incitação quase vitima Wagner Love, atleta do próprio clube, que chegou a ser agredido por integrantes de uma torcida organizada palmeirense, que cobravam maior eficiência do jogador.
Episódios de violência ainda mais graves aconteceram após a rodada final do certame. No Rio de Janeiro, jovens torcedores do Flamengo trocaram a alegria pelo ódio ao semelhante. Vestidos com camisas rubro-negras, moradores de bairros de classe média alta se digladiavam, trocando socos e pontapés a céu aberto, nas ruas e bares, onde a alegria deveria ser elemento de fraternidade.
Em Curitiba, vândalos uniformizados com as cores do Coritiba Foot Ball Club invadiram o campo de jogo, após a partida que decretou o descenso da equipe para a Segunda Divisão em 2010. Policiais tentaram impedir, mas foram acuados pelos baderneiros que estavam armados de paus, pedras e quaisquer objetos que encontravam pela frente. O saldo foi de duas pessoas internadas em estado grave, outras 16 com ferimentos leves, entre elas, sete policiais. Além disso, o clube estima em R$ 500 milhões o prejuízo para reconstruir o Estádio Couto Pereira, depredado pelos criminosos.
Para analisar a questão, o Olhar Virtual entrevistou Victor Andrade de Melo, professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs). Para ele, “o fenômeno de futebol movimenta emocionalmente um conjunto enorme de pessoas, então é compreensível tornar essa emoção uma festa”, reconhece. Segundo o docente, “é preciso ter cuidado com a ideia de barreiras”, pois “os indivíduos não são violentos por causa, mas sim também pelo esporte. A violência pode ser expressa em outras paixões, e deve ser sempre coibida.”
Olhar Virtual: Quais os motivos para essa grande paixão do brasileiro pelo futebol?
Victor Andrade: O futebol foi o primeiro esporte em que a população teve uma possibilidade maior de participação. Existem algumas hipóteses para explicar a paixão pelo esporte. Uma delas é o fato de a prática ter contato corporal mais frequente. Além disso, podemos jogar futebol em qualquer lugar, sem nenhum tipo de equipamento: duas pedras podem virar um gol, meio-fio torna-se a lateral e qualquer objeto pode ser a bola. As camadas populares passaram a ocupar espaço nos clubes, antes reservados para as elites. O futebol tornou-se um objeto de identificação da cultura mestiça e foi rapidamente apreendido pelos meios de comunicação, principalmente pelas rádios.
Olhar Virtual: Por que, em determinadas situações, o futebol desperta, em algumas pessoas, sentimentos como o ódio e a fúria?
Victor Andrade: O esporte está completamente ligado à construção da modernidade do século XIX. Dentro do fenômeno cultural do esporte, está a ideia de controle da violência e ao mesmo tempo um espaço para permissão do descontrole. Os espaços dos esportes mais populares são reconhecidos como locais onde as pessoas expressam seus sentimentos de forma mais explícita: xingando, comemorando. No ideário da modernidade, há um processo de controle da violência, mas o esporte é ambíguo, porque se apresenta como um controle, mas também um campo de fuga, de maior espontaneidade.
Um exemplo do controle são as regras. No futebol antigo, não havia falta e nem cartões. Hoje existem, mas no futebol permanece a ideia de violência e exacerbação. Não devemos aprovar esse tipo de comportamento, mas ele não é surpreendente. Assim como não é surpreendente que um indivíduo com padrões elevados civilizatórios no campo de futebol fique extremamente irritado. No entanto, não podemos quebrar a linha entre controle e descontrole sem violência, pois este é o grande barato do esporte praticado com os pés.
Olhar Virtual: O que torna o futebol tão popular, se comparado aos demais esportes?
Victor Andrade: A capacidade que o futebol teve para ser absorvido mais rapidamente por diferentes camadas sociais, fato ligado à facilidade de prática do esporte e rápida apreensão do esporte pelos meios de comunicação. O futebol já estava presente na imprensa brasileira desde a década de 1910, não só com o desenvolvimento de uma imprensa esportiva própria, como também pela vinculação de notícias esportivas nos principais jornais do país. Com o desenvolvimento do rádio na década de 1920, o futebol se difundiu muito.
Olhar Virtual: O senhor acha que esta paixão em alguns momentos passa dos limites?
Victor Andrade: Acho que os limites são ultrapassados, mas temos que ter cuidado com a ideia das barreiras. O fenômeno de futebol movimenta emocionalmente um conjunto enorme de pessoas, então é compreensível tornar essa emoção uma festa. Logo, não acho que fechar ruas é passar dos limites.
Passamos dos limites quando especificamente falamos da violência, entre torcidas, dos dirigentes e dentro do gramado. O futebol não é responsável por esse tipo de procedimento. Os indivíduos não são violentos por causa, mas sim também pelo esporte. A violência pode ser expressa em outras paixões, e deve ser sempre coibida.
Olhar Virtual: O senhor acredita que o esporte, em seus primórdios, foi a evolução da guerra, uma forma lúdica de representar o domínio do adversário?
Victor Andrade: Esse ponto de vista é polêmico. Não vejo o esporte dessa forma. O esporte é um formato moderno de antigas práticas de diversão, algumas mais violentas, de enfrentamento corporal. Em alguns momentos, o esporte dramatizou tensões do cenário político no cenário mundial: na Guerra Fria, o esporte era um campo de combate entre comunistas e capitalistas. A prática é uma forma de diversão mais controlada, ponderada e estruturada, se compararmos com formas mais antigas.
Olhar Virtual: O futebol funciona como válvula de escape para os problemas sociais brasileiros? Por quê?
Victor Andrade: Não funciona. Uma coisa é falar que o futebol é um momento de descontrole e de exacerbação. No entanto, considerar ele um instrumento alienante é algo precipitado. Ele é uma possibilidade de diversão, como várias outras: música, dança etc. O futebol não apaga os problemas sociais, temos de colocá-lo numa justa medida.
Olhar Virtual: De que maneira a paixão do brasileiro pelo futebol pode ser usada positivamente?
Victor Andrade: Acho que devemos tomar cuidado com relações preestabelecidas. Não existem dados que comprovem, por exemplo, que atletas que fazem esporte não usam drogas. O futebol é como qualquer outro objeto, não é essencialmente mau e nem bom. Pode ser bastante útil em projetos sociais, mas o esporte não traz isso carregado em si, isso dependerá de como o futebol será utilizado e trabalhado. Existem experiências interessantes de projetos que fazem uso do esporte como ferramenta social, o que não garante que isso sempre vá acontecer. Muitos trabalhos não trazem nenhum ganho para os indivíduos, eles apenas jogam futebol, o que poderiam fazer em outros lugares.
Olhar Virtual: O futebol pode perder o status de mais popular no futuro?
Victor Andrade: O futebol é o esporte mais popular em muitos países, mas em outras nações ele divide as atenções com outros esportes. Nos Estados Unidos, o esporte não é o mais famoso. A Federação Internacional de Futebol (Fifa) tem mantido a popularidade do futebol em alta: espetacularizam os eventos futebolísticos, utilizam bem a imprensa, preocupam-se com o espetáculo coibindo a violência e criando novas regras. A Fifa sabe vender seus produtos, e os meios de comunicação querem comprá-los. A Copa do Mundo é o evento de maior audiência no mundo inteiro. Por isso, acredito que o futebol manterá a hegemonia nos próximos anos. No entanto, isso não pode ser generalizado para todas as nações. Outros esportes estão emergindo: no Brasil o vôlei ganha cada vez mais prestígio.