Edição 245 14 de abril de 2009
“Entrei no hospício no dia de Natal. Passei as famosas festas, as tradicionais festas de ano, entre as quatro paredes de um manicômio. Estive no pavilhão pouco tempo, cerca de vinte e quatro horas. O pavilhão de observação é uma espécie de dependência do hospício a que vão ter os doentes enviados pela polícia, isto é, os tidos e havidos por miseráveis e indigentes, antes de serem definitivamente internados.” Assim como o escritor Lima Barreto — autor do livro O cemitério dos vivos, do qual foi extraído o trecho citado —, todos que chegavam ao Hospício Nacional de Alienados (o atual Palácio Universitário, no campus da Praia Vermelha) com suspeita de loucura passavam antes pelo Pavilhão de Observações Clínicas. Hoje, os registros médicos gerados durante o período em que os pacientes lá permaneciam se encontram preservados na Biblioteca Professor João Ferreira da Silva Filho, vinculada ao Instituto de Psiquiatria (IPUB) da UFRJ, num valioso acervo reencadernado pelo Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) no ano passado.
Segundo Cátia Mathias, responsável pela biblioteca, o acervo contém cerca de 600 livros, com anotações que datam de 1896 até 1950. Devido à deterioração dos arquivos provocada pelo tempo, o SiBI/UFRJ iniciou a reencadernação dos documentos e o projeto foi levado adiante pelo IPUB.
Diagnóstico de insanidade mental era feito no Pavilhão
Criado em 1893, o Pavilhão de Observações Clínicas era um serviço do Hospício Nacional de Alienados ligado à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Os pacientes que chegavam ao anexo, em geral trazidos das ruas pela polícia, eram avaliados por até 15 dias antes de serem transferidos definitivamente para o hospício. “Se o quadro de alienação fosse comprovado, ocorria a transferência. Se não, eles recebiam alta”, explica Cátia. “Seguindo a Lei de Assistência aos Alienados de 1903, as observações clínicas (espécie de prontuário) feitas pelos psiquiatras durante este período foram reunidas e encadernadas com o objetivo de formalizar o registro dos pacientes. Agora, a reencadernação se faz importante para que esta parte da história da Psiquiatria brasileira continue preservada”, ressalta.
Além de dados pessoais e antropométricos (medidas físicas do corpo), cada documento guarda ainda uma fotografia do interno e um relatório com todos os exames realizados durante a estadia no pavilhão. “Há muitas informações sobre tratamentos e medicações ministradas na época. A prescrição de banhos mornos e purgativos, por exemplo, era bastante comum”, conta Cátia. “Hoje, podemos até achar um pouco absurdo, mas esse era o tratamento de ponta que existia”, afirma. Também estão presentes no acervo recortes de jornais que contêm notícias sobre os pacientes.
De acordo com a bibliotecária, o Pavilhão de Observações Clínicas — que deu origem ao IPUB/UFRJ — constituía um serviço gratuito de avaliação preliminar e triagem dos pacientes, geralmente os mais pobres, que se apresentavam para serem internados. Por estar vinculado à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, o pavilhão servia de base para os estudos psiquiátricos desenvolvidos na Academia, o que acarretava, muitas vezes, o prolongamento da estadia do paciente. “Se o caso interessasse às aulas de Psiquiatria, o diretor do anexo, que também era professor da cadeira de Clínica Psiquiátrica e Moléstias Mentais, tinha autoridade para manter a internação pelo tempo que fosse necessário”, diz.
Para consultar o acervo, que é todo manuscrito, é preciso agendar dia e hora na biblioteca. Segundo Cátia, o material vem sendo bastante procurado por pesquisadores das áreas de Medicina e História, especialmente por estudantes de cursos de Pós-graduação. “Esta é uma fonte muito rica de pesquisa. São arquivos raros e únicos que precisam ser preservados porque, se forem perdidos, levarão consigo uma parte importante da memória da Psiquiatria brasileira”, finaliza.