Edição 254 16 de junho de 2009
Organizado por Manuel Antonio de Castro, professor de Poética da Faculdade de Letras da UFRJ, o livro Arte: Corpo, Mundo e Terra aborda a arte não como formalismo, mas como corpo vivo, aquilo que manifesta o que é próprio aos homens: a linguagem. Lançada este ano, a obra conta com artigos de diversos professores da UFRJ. Uma decisão que acentua a interdisciplinaridade, sinalizando o modelo de universidade que está por vir nos anseios da própria instituição.
Nas palavras de Castro, “uma universidade nova, realmente nova, que não apenas faça do ser humano um recurso humano, que leve ao cultivo e ao apropriar-se do que é próprio a cada ser humano. O próprio é a vida que cada um recebe para ser vivida e que em todos os seres vivos é diferente. O próprio é a afirmação mais radical das diferenças a partir e dentro do mistério da vida, do ser”. Ou seja, uma universidade que oriente para a diversidade, mas que nela não se esgote.
Olhar Virtual: Qual a proposta do livro Arte: Corpo, Mundo e Terra?
Fundamentalmente são duas. Primeira, fazer um exercício concreto de interdisciplinaridade. Para isso foram convidados diferentes professores de diferentes disciplinas, o que poderá ser visto facilmente pelo índice temático. Essa é a proposta central da poética: ela congrega todas as manifestações artísticas, sendo, portanto, uma poética originária, onde se reúne e une poesia e pensamento. A poética nada tem a ver com normas e gêneros como modelos a priori. A segunda diz respeito a algo mais profundo ainda: mostrar que a arte está muito além do modo sofístico, retórico e metafísico de a entender e classificar as obras de arte. Obra de arte não é organismo formal ou ideológico. Obra de arte é um corpo vivo. E como corpo vivo manifesta a vida enquanto terra e mundo. É o modo diferente e originário de compreender a arte. Esse é o grande desafio da poética.
Olhar Virtual: O que motivou a escolha de corpo, mundo e terra como focos temáticos para os artigos?
Esta pergunta já foi um pouco tematizada na resposta anterior. Acrescentaria que o emprego aí de terra nada tem a ver com o conceito de planeta. Isso pode ser visto bem quando é tratada a ecologia, melhor, a poético-ecologia. A ecologia não diz respeito a como é normalmente divulgado à natureza. Quando, por exemplo, se fala da natureza do processo político, da natureza humana, nota-se facilmente como o sentido banal de natureza não dá conta desses sentidos. É que natureza é algo diretamente ligado à essência do ser homem. E a essência do homem é a linguagem. E a linguagem é mundo. Ora, as obras de arte é que manifestam o próprio do homem: a linguagem, isto é, mundo. Nesse sentido, a essência da pólis é a promoção e realização do próprio dos cidadãos, isto é, é a tarefa essencial da pólis. É a sua tarefa: a de educar o ser humano, todo ser humano. Educar diz aí o que a palavra desde a sua origem latina diz: conduzir para fora, para a manifestação, o que cada um já traz dentro de si como próprio. Portanto, a arte é essencialmente essa promoção. Logo, ela é essencialmente uma tarefa política, ecológica, ética e poética.
Olhar Virtual: Há um viés heideggeriano na obra?
A pergunta é oportuna. Uma das tarefas inovadoras da poética é também proclamar que não há autor sem obras. E, portanto, o que interessa são as obras. Agora imagine que as obras são alimentos. Cada um que as lê se nutre das reflexões que desenvolvem e contêm. Esse é o alimento que nutre o ser humano enquanto linguagem. Quando nos alimentamos, não nos alimentamos de adjetivos: heideggeriano, junguiano, marxista, hegeliano, cartesiano, kantiano etc. etc. Nos alimentamos das questões das obras. Essa alimentação faz eclodir, aparecer, o corpo no que ele tem de próprio. Seu corpo metaboliza o que come para manifestar o que é próprio de cada corpo. O mesmo acontece com a leitura das questões das obras. Cada leitor deve fazer uma metabolização, senão será algo que ele não é. Quem mais, e todo mundo reconhece isso, pôs em pauta as questões essenciais do ser humano em todas as suas dimensões no século vinte foi Heidegger. Qualquer "ismo" ou adjetivo é a negação do questionamento. Todo grande autor e criador é um questionador. E é das obras deles que gosto de me alimentar. Além de Heidegger, citaria Platão e, no Brasil, o grande pensador-poeta João Guimarães Rosa. Este frequenta muito mais meus ensaios do que o próprio Heidegger. Mas o uso de qualquer adjetivo para classificar alguém é sempre impróprio (só se a pessoa for alienada e pseudocópia de alguém). Todo grande autor quer fazer de seus leitores pessoas que pensem e jamais sejam cópia do que eles dizem. Eis o que diz Rosa em Grande sertão: veredas: “Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém... (Rosa, 1968: 347)”
Como vê, o próprio Rosa aconselha que jamais sejamos heideggerianos, marxistas, kantianos, platônicos etc., não pode nem convém. Seria a mais radical e mortal alienação.
Olhar Virtual: A arte seria capaz de trazer a alétheia, a revelação do Ser, enquanto manifestação das múltiplas presenças do Divino?
Os gregos tinham duas palavras fundamentais para “vida”: zoé e bíos. Bíos é cada ser vivo. E zoé é o vigor vital que possibilita cada ser vivo. Não vivemos sem a zoé, mas esta não se extingue quando um ser vivo deixa de viver ou, como belamente disse Rosa, desvive. Porém, a zoé não está nunca separada de cada ser vivo, de todos os seres vivos. Cada bíos, cada ser vivo, vive no e a partir da zoé. A manifestação da zoé em cada ser vivo, ou seja, do seu sentido, é que constitui o que chamamos de artístico (corpo, terra e mundo). A manifestação da zoé em cada ser vivo é o que os gregos chamaram de alétheia. Ela é a verdade porque essa manifestação se torna linguagem e sentido, ou seja, terra e mundo, realidade. E isso é que é arte. Arte nada tem a ver com forma estética ou ideológica. Isso é formalismo sofístico e retórico que diz respeito aos utensílios. Os gregos chamavam ao vigor de manifestação em diferentes, múltiplos e riquíssimos seres vivos de presença e manifestação do divino, ou seja, de theoi. As manifestações do sagrado, isto é, da zoé, se dão de muitas maneiras: são "theoi", isto é, deuses. Não é que haja muitos deuses, mas que há muitos modos e maneiras de o sagrado se manifestar. Não é sagrada e divina a riqueza das vidas e da vida? O sentido do sagrado é manifestado nas obras de arte. Arte é vida, é zoé, um vigor que não cessa nunca de vigorar e fazer acontecer a história e a vida.
Olhar Virtual: Em que medida realizar o corpo seria realizar o ser humano?
Corpo não é organismo. Corpo não é matéria oposta a alma e espírito (razão). Corpo é o humano se realizando. O que é então o humano? O humano é a vida (bíos) sendo, se dimensionando pela zoé/ser. O humano é a essência do que é próprio a todo ser humano. E o que lhe é próprio é a zoé/ser. Por isso, cada obra de arte verdadeira é um “corpo vivo”. Quem insiste nesse corpo vivo é Platão no diálogo Fedro, que trata da essência do humano ligado ao amor e ao sagrado.
Olhar Virtual: A terra tem menos a ver com os seus recursos materiais e tangíveis do que com o lirismo transposto em uma obra de arte?
A leitura da terra como dispositivo de recursos naturais é uma leitura da sofística retórica e metafísica, encarnada na ciência moderna. Por isso, esta não fala apenas da terra como recursos naturais, também reduz o humano, no que lhe é próprio, a meros recursos humanos. Veja, tudo se torna recurso. Recurso é algo que pode exercer alguma função dentro de um sistema. O humano poder ter diferentes funções é importante e faz parte de sua essência esse poder ser, mas reduzi-lo a funções é negar o que há de mais próprio no ser humano. Por isso, o humano só é essencialmente político quando se realiza em todas as suas potencialidades e não fica reduzido a funções técnicas e ideológicas. Nisso a educação e mais ainda a universidade estão falhando. Terra, essencialmente, é zoé/ser, é um criar contínuo, isto é, gerar vidas novas. Por isso, o ser humano quando tem uma determinada vivência diz a todo momento: “Sou isto, sou aquilo, isto é, vivo isto, vivo aquilo, mas onde o viver se dá como linguagem e sentido, isto é, corpo, obra de arte.”
Olhar Virtual: Como fazer para distinguir o mundo como questão e o mundo como conceito?
Muito simples: quando se adjetiva o mundo, temos os conceitos. Por exemplo: mundo antigo, moderno, medieval, religioso, pagão, católico, cristão, oriental, ocidental, político etc. etc. Quando o ser humano se experiencia como linguagem e sentido, então temos mundo enquanto questão. Questão não é algo que alguém pode ter ou não. Todo ser humano quando nasce já nasce dentro e a partir das questões. Já nasce na vida, que é questão, no tempo, que é questão etc.