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Edição 243      31 de março de 2009


Entrelinhas

O rei e a Igreja

Aline Durães

capa do livro

Foi na primeira década do século V d.C. que os suevos, povo germânico resultante da dissolução do Império Romano, chegaram à região da Galiza, situada ao noroeste da Península Ibérica. Ali, fundaram um reino. A partir de 550, no entanto, com a chegada de um bispo, a organização desse reino passa a sofrer mudanças profundas, provocadas pela influência incisiva do Clero católico sobre a Monarquia sueva.

A relação entre monarca e episcopado na península hispânica do século VI é o tema principal do livro Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: o modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Escrita por Leila Rodrigues da Silva, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, a obra, lançada em março deste ano, destaca que a chegada do bispo Martinho de Braga imprime um perfil cristão ao reinado, cada vez mais suscetível às influências eclesiásticas. Em contrapartida, numa espécie de relação simbiótica, a Igreja possibilitou a consolidação da Monarquia e a legitimação do poder do rei nas terras de Galiza.

Ainda pouco analisadas nas universidades brasileiras, as trocas entre o Clero e a Monarquia na Galiza, de acordo com a autora, ajudam “a compreender o papel das autoridades religiosas na produção da ideologia que promoveu a legitimação dos governantes ao longo da Idade Média e a manutenção das relações sociais que marcaram o período”. Além disso, a importância da obra reside no fato de ela ser mais um documento que nos ajuda a compreender melhor os primeiros séculos da era medieval.

O Olhar Virtual conversou com Leila Rodrigues da Silva. Na entrevista, a professora explica, em detalhes, quem foi Martinho de Braga, elucida como a Igreja se articulava com os reis suevos e pontua a necessidade de os estudantes de História voltarem sua atenção para o período inicial da Idade Média. Confira.

Olhar Virtual: O livro é uma adaptação da sua tese de Doutorado defendida em 1996, no Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Em que aspectos o livro difere da tese?

Embora a estrutura fundamental do texto, bem como a lógica da argumentação tenham sido preservadas, busquei, por um lado, atualizar as principais questões abordadas a partir da bibliografia produzida nos últimos anos e, por outro, conferir à redação um tom menos formal do que o predominante originalmente.

Olhar Virtual: Quem era o bispo Martinho de Braga?

As datas referentes a Martinho e a maior parte das informações sobre a sua vida estão baseadas em hipóteses formuladas a partir dos escassos documentos de que a Historiografia dispõe. Ao que tudo indica, ele chegou ao noroeste da península hispânica por volta de 550, vindo da Panônia (atual Hungria), onde teria nascido em torno de 510. Há uma longa discussão acerca dos motivos que teriam motivado sua opção por viver na Galiza. O mais provável é que Martinho, já inserido na estrutura clerical, tivesse sido incumbido por autoridades eclesiásticas de cristianizar as populações que habitavam aquela região, onde havia sido constituído o reino suevo, após as invasões de fins do Império Romano.

Conhecido pelos seus contemporâneos como extremamente culto, Martinho utilizou seus conhecimentos, na esfera teórica, por meio da redação de obras, e no campo prático, como na participação de concílios, em prol da reorganização e fortalecimento da Igreja na Galiza. Ascendeu rapidamente na hierarquia religiosa e logo se tornou uma espécie de porta-voz do episcopado local. Isso lhe garantiu a possibilidade de interferir não apenas nesse processo de organização da Igreja, mas especialmente na esfera política. Assim, ocupou o papel de conselheiro dos monarcas suevos, dedicou-lhes obras e trabalhou na formação educacional de príncipes e integrantes da corte.

Olhar Virtual: Que características distinguiam a Igreja galiza do episcopado das demais regiões da Península Ibérica?

Ao nos referirmos à “Igreja” no contexto dos reinos germânicos, precismos reconhecer que essa instituição se encontrava em processo de construção. Tal movimento se constituiu de modo singular em cada reino. Não existia, pois, uma Igreja universal, como a que se configurou a partir do século XI. Em contrapartida, exisitiam elementos comuns às várias “Igrejas Nacionais”. À luz de uma tradição cultural partilhada, o episcopado, por exemplo, atuou em uma mesma direção, adotando estratégias semelhantes no trabalho de cristianização nos vários reinos.

Na Galiza, logo após a chegada de Martinho, os documentos atestam a conversão dos monarcas suevos ao Cristianismo. Tal acontecimento se insere em um amplo processo de aproximação entre as autoridades políticas e eclesiásticas do reino, que propiciou à Igreja galaica um ambiente favorável à sua reorganização interna e ao seu fortalecimento. Embora esta instituição tivesse se mantido relativamente atuante logo após a chegada dos germanos ao interior do antigo Império Romano, de uma maneira geral não ficou imune aos desdobramentos desse processo. Internamente, precisou enfrentar dificuldades acentuadas nos anos que antecederam a conversão e a aliança entre as autoridades políticas e eclesiásticas, como o convívio com heresias, a debilidade da disciplina e da hierarquia clericais, a pouca qualificação do clero e a forte presença de superstições e práticas pagãs entre as populações camponesas.

Olhar Virtual: Qual era o modelo de Monarquia adotado pelos suevos? Ele poderia ter sido aproveitado por outras monarquias da Europa?

O modelo de monarca proposto por Martinho aos reis suevos destacava a prática da prudência, da magnanimidade, da continência, da justiça e da humildade, e o repúdio à jactância e à soberba.

Um monarca prudente deveria se conduzir de acordo com a razão e se orientar na busca da verdade, da essência, do duradouro e do equilíbrio. Para o alcance e permanência na magnanimidade, ao monarca se indicava um perfil honrado e generoso. À prática da continência se impunha, particularmente, a compreensão de que o equilíbrio teria que ser conquistado, ao que se vinculava a valorização da paciência, da amabilidade, do perdão e da justiça. Quanto ao monarca justo, sugeria-se uma conduta que procurasse favorecer a todos, não prejudicar ou permitir que alguém fosse prejudicado, a partir do reconhecimento de que cabia ao governante a consideração da justiça associada à prática do cristianismo e procedente de Deus. No que se refere à humildade, o monarca deveria, sobretudo, reconhecer as ilimitadas potencialidades do poder divino e a sua subordinação a Ele.

Sublinhando na jactância e na soberba a sua natureza contrária à virtude cristã da humildade, Martinho vinculou a manutenção do compromisso do monarca com Deus ao afastamento de tais vícios.

Em relação ao conjunto elaborado, mais do que a apresentação de um paradigma de monarca qualquer, formulou-se no reino suevo, em meados do século VI, um padrão de rei em consonância com princípios e valores que priorizavam, sobretudo, o perfil cristão. Tal perfil, em tese, favoreceria a possibilidade de os eclesiásticos exercerem influência direta e regular sobre o monarca.

Olhar Virtual: Como Igreja e Monarquia se articulavam no reino dos suevos?

A aproximação, no reino suevo, entre a Igreja e a Monarquia, a partir de meados do século VI, proporcionou vantagens para ambas. Assim, se tal aliança tornou possível a existência de um espaço no qual a ação eclesiástica pôde contribuir para o desenvolvimento de mecanismos de consolidação do reino e reconhecimento ou ratificação do caráter legítimo do monarca suevo, a referida ação não se configurou incondicionalmente. Dessa forma, vinculado ao processo de reorganização e fortalecimento da Igreja na Galiza, Martinho de Braga, como porta-voz do episcopado local, formulou um padrão de monarca que, embora não subordinasse o rei à autoridade dos eclesiásticos, indicava-lhe parâmetros de comportamento. Ao monarca se atribuiu uma função moral e isso lhe conferia um caráter especial. De acordo com a proposta que se apresentava, não havia, pois, dúvidas sobre a relevância da sua função. Nesse sentido, verificamos a demonstração de uma política adotada pelas autoridades religiosas galaicas de disciplinamento do monarca “bárbaro” a partir da consideração de princípios e valores cristãos.

Olhar Virtual: Em que o estudo da Igreja e dos reis suevos auxilia na compreensão da religiosidade medieval ibérica?

A lógica que norteou a produção por um bispo de um modelo de conduta para um rei germânico pode ser melhor apreendida se inserimos tal construção em um contexto religioso e político mais amplo. Desse conjunto devem fazer parte a análise da religiosidade das populações do reino e da estrutura e funcionamento da Igreja, por um lado, e das relações de poder entre autoridades políticas e eclesiásticas, por outro. Assim, o estudo da Igreja e da sua relação com os reis suevos mais do que contribuir para entender a religiosidade medieval ibérica, ajuda a compreender o papel das autoridades religiosas na produção da ideologia que promoveu a legitimação dos governantes ao longo da Idade Média e a manutenção das relações sociais que marcaram o período.

Olhar Virtual: Os alunos de História ainda estudam pouco a trajetória dos suevos e a Igreja na Galiza? Que motivos poderiam explicar esse desinteresse?

Sim, a trajetória dos suevos e dos demais grupos germânicos que organizaram reinos após a desestruturação do Império romano é pouco estudada nas universidades brasileiras. Não há evidentemente um motivo claramente definido para tal, mas devemos considerar que esse cenário se relaciona, entre outros aspectos, à visão ainda predominante acerca do período medieval. A Idade Média esteve durante muito tempo, mesmo na academia, associada a um momento da História da humanidade no qual as “Trevas” teriam prevalecido. A despeito do importante trabalho realizado nas duas últimas décadas por professores e pesquisadores em nossas universidades, o preconceito no que se refere ao período ainda é um entrave a ser superado. Além disso, entre os que se interessam pela Idade Média, há maior procura por temas identificados com os séculos XI-XIII, momento de maior prosperidade econômica e cultural, ou com os séculos finais (XIV-XV), dada a possibilidade de vínculos mais evidentes com a história do Brasil.

De qualquer forma, hoje, fortalecendo uma tendência que apenas havia sido esboçada há duas décadas, o interesse pelo período tem promovido grande quantidade de pesquisas, cujos resultados, na forma de monografias, dissertações e teses, são significativos. Esse conjunto compreende trabalhos sobre os germanos e a relação que estabeleceram com a Igreja no interior dos reinos em princípios da Idade Média.

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