Edição 243 31 de março de 2009
Desigualdade e concentração de renda, para muitos, remetem a impactos prejudiciais na constituição socioeconômica de um país. No entanto, para o economista James Davies, tais fatores podem ter efeitos positivos, estimulando o empreendedorismo entre os menos favorecidos. Essa foi a conclusão obtida por Davies após a realização de uma pesquisa que investigou as dimensões da desigualdade na distribuição da riqueza pelo mundo.
De acordo com o estudo, feito pela Universidade das Nações Unidas e lançado em Londres na última terça-feira, Estados Unidos e Japão concentram 64,3% dos indivíduos no grupo de 1% mais ricos do mundo. Já o Brasil tem apenas 0,6% da população nesse grupo, que representa aqueles com patrimônio superior a US$ 512,4 mil.
Segundo o economista, essa disparidade entre as nações pode atuar como incentivo para que aquelas localizadas nas últimas posições da escala de desenvolvimento mundial adquiram espírito empreendedor e se lancem na corrida rumo ao enriquecimento. Para refletir sobre a questão, bem como sobre o posicionamento de Davies quanto às chances de a desigualdade impulsionar o crescimento econômico, o Olhar Virtual conversou com Paulo Baía, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, e Alcino Câmara Neto, decano do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas.
Discordo radicalmente da afirmação de James Davies de que a desigualdade entre países pode ter um efeito positivo para o desenvolvimento. A desigualdade entre as nações e as diversas sociedades é o sintoma de que um pequeno grupo de privilegiados, em poucos Estados-Nações, enriqueceu explorando, escravizando e exterminando milhões de seres humanos com foco particularizado nos continentes africano, americano e asiático.
Ser discriminado e explorado não beneficia ninguém individualmente, muito menos um Estado-nação ou uma sociedade, ou ainda um grupo étnico. Entretanto, a consciência da desigualdade e discriminação é importante para que os despossuídos se organizem e lutem por direitos, pelo fim das discriminações e pela diminuição radical da desigualdade.
Creio que Davies considera natural a realidade social dos países espoliados. Ele justifica o quadro de dominação de um pequeno grupo de pessoas, e de alguns poucos Estados-nações, em detrimento da maioria absoluta da humanidade e, de forma mais dramática, dos milhões de negros africanos e ameríndios exterminados e/ou escravizados.
A desigualdade é sempre fonte de desesperança e sofrimento. Contudo, é importante que as populações criem laços de pertencimento a grupos sociais e/ou nacionais e tenham como objetivo denunciar as desigualdades e superar as consequências dos sistemas sociais desiguais. Isso pode ser feito por intermédio de políticas de ações afirmativas implementadas por governos e ações de solidariedade e fraternidade humanitária de grupos sociais comprometidos com os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU.
A meu ver, não há como o crescimento conquistado à custa da desigualdade se converter na redução da pobreza. O Estado brasileiro é um bom exemplo de Estado-Nação que tem crescimento e desenvolvimento econômico em larga escala e de longa duração, assentados na perpetuação da desigualdade e das múltiplas discriminações. Assim, quando uma sociedade naturaliza as disparidades socioeconômicas, efetivamente ela não quer acabar com a pobreza. O caso brasileiro mais uma vez é paradigmático. Para se implantar políticas de ações afirmativas e de combate às múltiplas discriminações, é necessário que pequenos grupos lutem como insanos, pois Ministros de Estado de um governo democrático como o atual se colocam contra políticas de transferência de renda para pobres. Além disso, grupos privilegiados censuram e ridicularizam as muito poucas ações afirmativas que de forma humanitária são levadas à frente em diversos governos municipais, estaduais e federal na República brasileira.
O Brasil é um país com elevado nível de crescimento econômico. É um Estado e uma sociedade altamente modernizada, que domina conhecimentos tecnológicos e científicos de ponta, e que, no entanto, situa-se entre as sociedades mais perversas, excludentes e desiguais do planeta.
Para atenuar a desigualdade no Brasil, não precisamos inventar a roda. Temos que radicalizar, aumentando de maneira exponencial as atuais políticas de transferência de renda existentes, e adotar políticas de ações afirmativas que levem em conta a diversidade étnica e regional no país.
Claro que não concordo com a afirmação de que a desigualdade entre países pode ter um efeito positivo para o desenvolvimento, porque não concordo igualmente com o pressuposto que levou o economista James Davies a tal afirmativa, de que é o caráter empreendedor de certos indivíduos que leva à riqueza das nações. Ele não chega a dizer que os países mais desiguais são os que vivenciam o maior incentivo, o que é inteiramente contestado pelos fatos, mas afirma que uma pequena desigualdade seria "estimulante". Ainda assim não acho que seja desta maneira que se dá o processo de desenvolvimento, mas a partir de uma decisão política de busca de rompimento com a dependência.
Além disso, não gosto do termo “espírito empreendedor”. Enfatiza excessivamente o papel que a iniciativa privada teve nos processo de industrialização e desenvolvimento e minimiza o papel crucial que tiveram os Estados onde essas iniciativas foram tomadas. Acredito que as motivações que levam um país a buscar superar seus atrasos seriam melhor consideradas como respostas ao desafio. Para que elas ocorram é preciso a existência de uma elite burocrática com forte sentido de Estado e uma parcela das classes dominantes em situação tal que o rompimento com a dependência lhes pareça crucial a sua própria sobrevivência.
Não vejo a possibilidade da desigualdade ser benéfica para um país. Benéfica para quem? Só se for para a elite econômica e social daquele país. Para um país como um todo, esta afirmação parece inconcebível. Pressupõe que a desigualdade é necessária ao crescimento econômico e que este é mais importante que igualdade. E, ainda, que estes dois últimos são ou podem ser em algum momento incompatíveis. Trata-se de afirmações fortes que não são corroboradas por evidências empíricas irrefutáveis. Aqui e ali pode haver países e épocas em que pareceu haver este trade-off, entre crescimento e desigualdade, mas não há como provar que este era o único caminho possível.
As evidências demonstram que um Estado independente e uma sociedade articulada através ou a partir dele em torno de um projeto nacional ajudam muito no processo de estímulo ao crescimento de um país. Outro fator que parece importante em várias experiências históricas é a posição geopolítica do país. Por exemplo, a posição estratégica da Coreia do Sul, próxima à Coreia do Norte, China e URSS, durante a Guerra Fria permitiu a mesma gozar de forte apoio americano, bem como de uma atitude que poderíamos chamar de benevolente em relação ao desenvolvimento de uma indústria nacional com apoio às empresas nacionais, cópia de tecnologia, discriminação contra empresas estrangeiras, o que seria considerado inaceitável se tivesse partido do governo brasileiro.
Tudo isso se aplica ao Brasil, ou seja, não é a desigualdade brasileira a responsável por qualquer estímulo ao desenvolvimento. Ao contrário, ela é inibidora, já que leva a um mercado menor para a ampla gama de produtos, quando não tira grupos inteiros do mercado de consumo. Por outro lado, a distribuição mais igualitária da renda seria estimulante via consumo e socialmente muito mais justa, mas não é condição suficiente para a expansão da economia. Sem um Estado voltado para os interesses nacionais e uma política de desenvolvimento que combine instrumentos de longo prazo, como política industrial (e até ao nível de empresas), e de curto prazo (políticas fiscal, monetária e cambial), não haverá crescimento com autonomia e menor desigualdade.