Edição 266 08 de setembro de 2009
No último dia 25 de agosto, a Suprema Corte argentina descriminalizou o uso de maconha em pequena escala. A alta corte julgou inconstitucional abrir processos envolvendo casos de uso privado da droga, e que não prejudiquem terceiros. A decisão foi influenciada por um pedido do governo argentino, para que assim redirecionasse os gastos no combate aos traficantes e no tratamento antidrogas, não se preocupando com casos menores. Não há uma definição certa para que a quantidade de maconha seja considerada de “pequena escala”. A decisão resultou em muitas críticas por parte de autoridades da Igreja Católica argentina e de famílias de usuários que temem o maior tráfico. Na América Latina, Colômbia e México já descriminalizaram o porte de pequenas quantidades de drogas. Brasil e Equador estudam a possibilidade de legalizar determinados usos de droga.
Para discutir o tema, o Olhar Virtual o professor Michel Misse, do curso de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), e a professora Luciana Boiteux, professora-adjunta de direito penal da Faculdade de Direito (FD). Confira!
“Considero que a medida adotada na Argentina é positiva e faz parte de um processo gradual para descriminalização mundial da droga. Acho que o grande problema da questão não é a droga, mas sim os entraves que a ilegalidade desta traz. Pessoas morrem menos de overdose do que por tiros de traficantes de cocaína, maconha. A discriminalização da maconha é normal, pois essa droga é muito menos perigosa e causa muito menos morte do que outras legais, como as bebidas alcoólicas. Um passo maior para a descriminalização em qualquer país depende de convenções internacionais. Desde a década de 1910, a droga é criminalizada, mas hoje a grande tendência é a descriminalização, pois a ilegalidade só gera crime, grupos de tráfico, e, assim, mais violência e mortes. Por isso, considero também positiva a adoção dessa medida, agora adotada na Argentina, no Brasil.
Uma pessoa no Brasil, desde 2006, não é presa por uso de drogas, mas sim por comércio. Aquele que apenas a utiliza tem que prestar serviços comunitários, receber advertência sobre os efeitos das drogas e medidas educativas. É necessário em nosso país determinar qual quantidade de porte de drogas será considerada para comércio e qual será a quantidade considerada para uso. Não creio em um aumento da violência na Argentina com a medida, já que um mercado mais legalizado gera menos crime. Também não acredito num aumento do tráfico no país vizinho, tendo em vista que a decisão não afeta os usuários, que já sabem onde podem encontrar drogas para comprar.”
“Considero plenamente justificada a decisão argentina, pois o uso privado de drogas se insere na proteção constitucional da privacidade e da intimidade, tendo o indivíduo direito de fazer o que quiser com o seu próprio corpo. Esse direito está previsto tanto na Constituição brasileira quanto na argentina.
Não é possível avaliar ainda o que ocorrerá na Argentina, mas países mais tolerantes com usuários de drogas (como é o caso da Holanda e de Portugal) possuem índices médios de consumo, inferiores a países mais repressores, como os EUA. Segundo um especialista no tema, o professor Peter Reuter, da Universidade de Maryland, o que vai fazer com que uma determinada sociedade seja mais ou menos usuária de drogas não é a lei, mas sim a cultura e as políticas de prevenção adotadas. A lei penal só tem como consequência o número de pessoas que vão ser processadas ou presas, mas não tem condições de inibir o consumo. Em cem anos desse modelo proibicionista, o consumo só aumenta, as drogas ilícitas estão cada vez mais baratas e com menor pureza, e ainda é mínimo o número de usuários ou dependentes com acesso a tratamento. Medidas de redução de danos e controles administrativos sobre o consumo, tal como adotados em relação ao tabaco, têm muito mais condições de lidar com o abuso de drogas do que a repressão penal.
A descriminalização da maconha não terá impacto sobre o tráfico, que se fortalece mesmo é com a ilegalidade, como ocorreu nos EUA durante a lei seca, quando nunca se consumiu tanto álcool como naquela ocasião. O que deve realmente acompanhar a regularização é a autorização do plantio, para que os usuários não dependam do mercado ilícito para adquirir a droga.
É importante que as pessoas tenham acesso a informações corretas sobre a relação entre drogas e violência, pois o abuso no consumo do álcool, que é uma droga lícita, pode levar a pessoa a ficar violenta e a causar mortes no trânsito, o que não ocorre com o uso ou abuso da cannabis, por exemplo, considerada ilícita. Além disso, nos países que adotaram a política de descriminalização, como Portugal desde 2001, não foi identificada relação entre aumento da violência e descriminalização das drogas.
O Supremo Tribunal Federal nunca se posicionou especificamente sobre a questão de drogas, e quando o fez, de forma indireta, considerou que a nova Lei de Drogas havia apenas despenalizado o usuário, quando o seu artigo 28 estabeleceu penas alternativas nesse caso. Parece mais provável que, no Brasil, essa discussão se dê no Poder Legislativo, tendo em vista que o Ministério da Justiça e o Deputado Paulo Teixeira, do PT/SP, junto com o CONAD – Conselho Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas –, irão sugerir modificações na lei atual. E a descriminalização nos moldes de Portugal está sendo discutida como uma possibilidade. Está mais do que na hora de alterarmos o paradigma e entendermos que o direito penal não deveria ser utilizado para lidar com o usuário de drogas, sendo muito mais racional o uso do sistema de saúde pública e as formas alternativas de controle.
A saída proposta para diferenciar as escalas de uso e comércio seria a lei determinar objetivamente a quantidade máxima que um usuário poderia portar para não ser confundido com traficantes, tal como fez a lei portuguesa, que instituiu o limite de dez doses diárias. Conforme pesquisa recentemente realizada pelo Grupo de Pesquisa em Política de Drogas e Direitos Humanos da FD/UFRJ (que pode ser encontrada no site www.mj.gov.br/sal), com base em sentenças condenatórias por tráfico de drogas no Rio e em Brasília, identificou-se uma grande dificuldade nessa diferenciação, o que pode gerar injustiças.”