Edição 253 09 de junho de 2009
As recentes declarações do escritor Ferreira Gullar sobre a experiência de ter convivido com dois filhos esquizofrênicos suscitaram debates em torno de um problema que muitas famílias enfrentam no país: a decisão de optar ou não pela internação de um parente que sofre com transtornos psiquiátricos graves. O desconhecimento das possibilidades de convivência saudável do paciente com o meio social em que está inserido e o temor de que a internação resulte em isolamento e abandono levaram, ao longo da história brasileira, diversos segmentos a apoiarem o fim das unidades de internação, no movimento conhecido como “luta antimanicomial”.
Maria Tavares Cavalcante, professora de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFRJ e vice-diretora clínica do Instituto de Psiquiatria (IPUB), situa as reformas no tratamento psiquiátrico brasileiro no começo dos anos 80 como parte de um processo de transformações iniciadas após a Segunda Grande Guerra na Europa e nos Estados Unidos. Uma das consequências da difusão desse movimento foi a redução do número de leitos disponíveis em hospitais psiquiátrico no país, o que se tornou, por sua vez, barreira àqueles que buscam internação e risco para os pacientes em estado grave que necessitam do tratamento com urgência.
Para Elie Cheniaux, médico e pesquisador do IPUB, um ponto positivo da luta antimanicomial foi a mudança na estrutura dos chamados hospitais-colônia, que contavam “com centenas, às vezes milhares, de pacientes internados, e totalmente desassistidos, uma vez que o médico frequentava o hospital apenas uma vez por mês”.
Para aprofundar as discussões sobre a internação dos pacientes com problemas psiquiátricos, o Olhar Virtual conversou com esses dois especialistas.
“Um problema é que agora há essa dificuldade para familiares conseguirem uma vaga para internação do paciente, porque há uma ideologia de que toda internação é ruim, em função dos abusos e distorções cometidos ao longo da história da Psiquiatria. Tal fato levou à generalização de que, se as antigas formas de tratamento eram ruins, toda internação também o era, e seria possível, assim, tratar todos os pacientes em casa, o que é tecnicamente incorreto.
Não é raro que os pacientes precisem ser internados por curta duração, mas essa internação é fundamental, porque muitas vezes o paciente representa um risco para outras pessoas e para si mesmo quando está muito agressivo, não tendo consciência plena da própria doença mental.
A internação e o tratamento são fundamentais e auxiliam a maior supervisão sobre a adesão do paciente ao tratamento. Ele é retirado do convívio por algum tempo, mas, se a crise está mais intensa, a internação será mais prolongada, e durante esse período pode haver desenvolvimento de atividades que favoreçam a reabilitação psicossocial, como terapia ocupacional, arte-terapia e trabalhos em grupos com outros pacientes.
Então, mesmo na internação, o paciente não fica isolado, não tem essa história de quarto forte, prisão solitária, camisa de força... Isso se vê nos filmes ou em locais muito ruins que podem existir, mas não é a regra. Para impedir esse preconceito contra a internação, é preciso divulgar as informações técnicas e mostrar que a internação é necessária, mesmo que em curto prazo, para alguns pacientes.
A visão negativa da internação é transmitida para o leigo em novelas e filmes, e também pelos dados provenientes de profissionais da área de saúde mental que desconhecem as informações corretas ou estão tão engajados em alguma atividade política e absorvidos por essa ideologia que ignoram os conhecimentos científicos.”
“No Brasil, uma tentativa que tem sido feita em termos da reforma psiquiátrica é a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Hoje há mais de 1.600 espalhados pelo país. Apesar disso, os serviços dos hospitais psiquiátricos ainda se encontram concentrados na região sudeste. Há locais em que, antes do CAPS, não havia assistência nenhuma e, como as famílias não sabiam lidar com a doença, deixavam o paciente em casa, trancado.
Não se pode colocar ideologia na frente da clínica e da situação que se está vendo. Em alguns casos, talvez não haja como evitar a internação. No IPUB temos pacientes assim, a família gosta e cuida, mas eles estão em uma situação de desorganização, e o que se tem que fazer nesses casos é um trabalho junto com a família e o paciente, mas ainda o mantendo internado.
Tudo é uma questão de não ficar muito preso ideologicamente ao que é certo e errado; tem que ir construindo a interação da clínica com a situação da família, fazer um trabalho conjunto. É óbvio que o ser humano não nasceu para ficar preso, encarcerado. Então, se o tratamento puder caminhar para um grau maior de autonomia e liberdade, é melhor.
A internação não é a única forma de tratamento, certas vezes ela é necessária, em momentos pontuais, quando o paciente está em crise. Em situações de desamparo, o paciente acaba ficando um período maior no hospital, aí o nosso trabalho é construir um projeto terapêutico. A ideia de que o paciente vai ficar para sempre no hospital não está colocada, a internação é vista como questão momentânea, pode ser um ano ou dois, o que importa é que haja perspectiva. O paciente não ficará abandonado, estará sendo feito um trabalho clínico que vai englobar vários aspectos. Se a questão é encarada como definitiva, está faltando trabalho dessa equipe, que deve buscar outras soluções, trabalhar com o paciente e a família. Há casos em que o paciente recebe benefício, aluga um quarto, frequenta hospital-dia, ele não está sozinho. Tem que ser sempre criativo neste trabalho, buscar soluções, trabalhar com o paciente e a família.”
Com certeza, colocar os pacientes no hospital e deixá-los lá, comendo e dormindo, é mais fácil. Se um paciente é internado no hospital, mas não há um acompanhamento, que trabalho é esse? O hospital tem que ter vida, não pode virar um depósito.